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domingo, 6 de dezembro de 2020

PORQUE É IMPOSSÍVEL ENCONTRAR O SOLA SCRIPTURA NO NOVO TESTAMENTO

 


Cristo não nos deu um livro mas Seu Corpo que é a Igreja


Sola Scriptura, expressão latina que significa “somente a Bíblia”, designa o princípio protestante da Autoridade Única das Escrituras, é o princípio fundamental da Reforma Protestante, pois marca a oposição à Igreja Católica.


De fato, para a Igreja Católica Romana, Escritura, Tradição e Magistério são aspectos indissociáveis da transmissão da revelação divina, sem um dos quais esta se deforma.


Conforme ensina a Constituição Dogmática Dei Verbum (Concílio Vaticano II): “a sagrada Tradição, a sagrada Escritura e o magistério da Igreja, segundo o sapientíssimo desígnio de Deus, de tal maneira se unem e se associam que um sem os outros não se mantém, e todos juntos, cada um a seu modo, sob a ação do mesmo Espírito Santo, contribuem eficazmente para a salvação das almas”.


Neste documento o Concílio expressa o entendimento católico de que Nosso Senhor Jesus Cristo mandou aos Apóstolos que pregassem o Evangelho a todos e “Isto foi realizado com fidelidade, tanto pelos Apóstolos que, na sua pregação oral, exemplos e instituições, transmitiram aquilo que tinham recebido dos lábios, trato e obras de Cristo, e o que tinham aprendido por inspiração do Espírito Santo, como por aqueles Apóstolos e varões apostólicos que, sob a inspiração do mesmo Espírito Santo, escreveram a mensagem da salvação”. E “para que o Evangelho fosse perenemente conservado íntegro e vivo na Igreja, os Apóstolos deixaram os Bispos como seus sucessores, entregando lhes o seu próprio ofício de magistério”. Assim, “A sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só depósito sagrado da palavra de Deus, confiado à Igreja” enquanto “o encargo de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita ou contida na Tradição, foi confiado só ao magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo”. Magistério que “não está acima da palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido, enquanto, por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo...”.


Conforme o Catecismo da Igreja Católica “O Magistério da Igreja faz pleno uso da autoridade que recebeu de Cristo quando define dogmas, isto é, quando propõe, dum modo que obriga o povo cristão a uma adesão irrevogável de fé, verdades contidas na Revelação divina ou quando propõe, de modo definitivo, verdades que tenham com elas um nexo necessário”.


Em oposição a essa doutrina, o Protestantismo propõe Sola Scriptura.


Sola Scriptura é o princípio formal da “Reforma Protestante” pois “se posiciona no início de tudo e assim direciona e forma tudo que os cristãos afirmam” (James Montgomery Boice, “Reforma hoje: uma convocação feita pelos evangélicos confessionais”, Cultura Cristã, 1999, p. 7). Assim, “Sola scriptura é um dos princípios fundamentais da Reforma Protestante. Alguém poderia até dizer que outras grandes doutrinas da Reforma (tais como sola gratia e sola fide) são logicamente dependentes do sola scriptura” (Brian M. Schwertley, “Sola Scriptura e o Princípio Regulador do Culto”, Os Puritanos, 2001, p. 11).


O marco histórico dessa doutrina-princípio é tido como a resposta de Lutero na Dieta (audiência) Imperial de Worms (1521), em que ele teria dito “A não ser que seja convencido por testemunhos das Escrituras ou por argumento evidente (...) estou vencido pelas Escrituras por mim aduzidas e minha consciência está presa nas palavras de Deus - não posso nem quero retratar-me de nada”.


Dito resumidamente, Sola Scriptura significa que a Bíblia é a única fonte e regra de fé e de prática. Nos termos da recente “Confissão de Fé dos Evangélicos Católicos” (católico aqui no sentido de interdenominacional) as Escrituras são “a única regra e autoridade infalível e suficientemente clara para a fé, para o pensamento e para a vida cristãos (sola scriptura)”.


Segundo o já citado Brian M. Schwertley: “Todos os homens são proibidos de acrescentar ou subtrair algo das Sagradas Escrituras, seja pelas tradições humanas, ou pelas assim chamadas novas revelações do Espírito, ou pelos decretos de concílios e sínodos. A Bíblia é suficiente e perfeita e não necessita de quaisquer acréscimos humanos. Além do que, apenas aquilo que é ensinado na Escritura pode ser usado para tornar cativas as consciências dos homens” (idem, p. 13).


Resumindo, Sola Scriptura é a negação tanto da Tradição Apostólica quanto do Magistério, o ensinamento dado com Autoridade, exercidos e guardados pela Igreja Católica Apostólica Romana. “A Bíblia, toda a Bíblia, e nada mais que a Bíblia é a religião dos protestantes” (Charles Haddon Spurgeon, “The Eternal Name”).


Nos termos da Confissão de Fé Batista de Londres de 1689, que detalha essa visão protestante: “A Sagrada Escritura é a única regra suficiente, certa e infalível de conhecimento para a salvação, de fé e de obediência"; “Todo o conselho de Deus, concernente a todas as coisas necessárias para a sua própria glória, para a salvação do homem, a fé e a vida, está expressamente declarado ou necessariamente contido na Sagrada Escritura”; “as coisas que precisam ser conhecidas, cridas e obedecidas para a salvação estão claramente propostas e explicadas em uma passagem ou outra; e, pelo devido uso de meios comuns, não apenas os eruditos, mas também os indoutos, podem obter uma compreensão suficiente de tais coisas” “A regra infalível de interpretação das Escrituras é a própria Escritura”, o “juiz supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas devem ser resolvidas e todos os decretos e concílios, todas as opiniões de escritores antigos e doutrinas de homens devem ser examinadas, e os espíritos provados”.


Ora, nesses exatos termos, resta evidente que, necessariamente, por coerência, o próprio princípio-doutrina Sola Scriptura deve ser encontrado na Bíblia, especialmente no Novo Testamento. Se ele não for encontrado na Bíblia ele se destrói, pois se mostra algo proposto para ser crido que não pode ser provado biblicamente.


De fato, muitos são os que tentam apontar versículos bíblicos específicos para sustentar o Sola Scriptura com a Bíblia. Outros tantos intentam dizer que essa doutrina encontra-se implícita em tal ou qual aspecto da Bíblia. Mas quero mostrar que o Sola Scriptura é incompatível com a maneira como o Novo Testamento foi escrito e formado, que o insere dentro de uma Tradição que, embora nele tenha se condensado parcialmente, dando-lhe forma, necessariamente lhe ultrapassa.


No tempo da pregação pública de Nosso Senhor Jesus Cristo, o admirável Rabi, grande em palavras e obras, ensinava abertamente, nas praças, campos e aldeias (Mc 6,56), sinagogas (Mt 4,23) e no Templo (Jo 8,2). Seus discípulos, especialmente aqueles doze conhecidos como apóstolos, foram chamados a uma intensa convivência integral com Ele, em que aprendiam não apenas aquilo que Ele explicava às multidões, mas ainda mais, pois “tudo declarava em particular aos seus discípulos” (Mc 4,34). Foram três intensos anos de aprendizado. E, ao final, após ressuscitar dos mortos, Nosso Senhor Jesus Cristo os incumbiu de ir até os confins do mundo para pregar a Boa Nova e fazer seus discípulos em todas as nações (Mt 28,19).


Essa determinação, entretanto, somente veio a ser implementada depois do Pentecostes, quando os apóstolos receberam o Espírito Santo no Cenáculo, e pregaram à multidão de diversos povos e línguas reunida em Jerusalém (At 2).


Desse dia em diante, narra o livro dos Atos dos Apóstolos, eles se espalharam, foram aos mais diversos lugares daquele tempo. Destaque é dado a São Paulo, constituído apóstolo dos gentios pelo próprio Cristo, viajou incansavelmente e sem temor, apesar dos perigos, pelo Oriente Médio, Grécia, Macedônia e mesmo Roma. Sempre anunciando as Boas Novas de Jesus Cristo. E o livro dos Atos dos Apóstolos, escrito por seu companheiro, o médico São Lucas, narra em detalhe boa parte de sua vida.


Como sabemos, os Apóstolos, como Pedro, João, Mateus, Judas, Tiago, e seus discípulos, como Lucas e Marcos, escreveram os documentos preciosíssimos que foram reunidos e ganharam o nome de Novo Testamento (em comparação com os livros dos judeus que fizeram parte do Antigo Testamento), e ambos os conjuntos foram reunidos num todo que hoje conhecemos como Bíblia, palavra grega que significa livros, biblioteca. De fato, a importância desses livros é imensa, e os cristãos sempre os viram como sagrados, devido à sua origem e seu conteúdo, pois condensam parte do ensinamento dos Apóstolos. E esse é o ponto em questão aqui, parte desse ensinamento, não todo ele.


Primeiro, repare que, conforme os Evangelhos, Jesus pregou, oralmente e com seus gestos e sua vida, e mandou pregar. E nós vemos nos Atos dos Apóstolos a mesma atitude: os Apóstolos e discípulos pregando, oralmente (“disputava na sinagoga com os judeus e religiosos, e todos os dias na praça com os que se apresentavam”, At 17, 17) e mediante o exemplo de suas vidas (“vós mesmos sabeis como convém imitar-nos, pois que não nos houvemos desordenadamente entre vós”, 2 Ts 3, 7; e ainda “Sede meus imitadores, como também eu, de Cristo”, 1 Co 11, 1).


Repare também que em nenhum momento, quer nas narrativas dos Evangelhos, quer na narrativa dos Atos dos Apóstolos, menciona-se que Nosso Senhor Jesus Cristo, ou algum dos Apóstolos, ou seus discípulos, escrevia seus ensinamentos (algo como “tal apóstolo retirou-se voluntariamente a um lugar reservado, de onde escrevia seus ensinamentos e os enviava aos discípulos e igrejas etc.”). Isso não acontece porque eles, os Apóstolos e discípulos, nada tenham escrito, nem que seus escritos não fossem importantes.


Essa omissão, então, deve ser vista como decorrente de ser a escrita desses documentos uma atividade secundária para os próprios Apóstolos, em relação à pregação direta, pessoal e oral. Desse modo, dedicaram-se a escrever apenas em segundo plano, e por força das circunstâncias, quando a pregação pessoal e oral não era possível.


De fato, os Apóstolos pregaram como Jesus havia pregado, e não ficaram em escritórios escrevendo tratados, cartas e panfletos a serem levados aos lugares mais distantes. Eles cumpriram o mandamento de Nosso Senhor Jesus Cristo indo pregar a todas nações. E sabemos que eles e seus discípulos chegaram a lugares distantes como a Índia, a Rússia e até mesmo à China.


Vê-se que eles escreveram não para substituir a pregação oral e pessoal, mas por força das circunstâncias. Com efeito, embora um meio menos eficaz de transmitir ideias fidedignamente, dadas as simplificações necessárias à escrita e as distorções possíveis na interpretação do material escrito (qualquer pessoa que escreve sabe honestamente disso), a escrita é o único meio existente naquela época para transmitir algo a quem está longe, a quem não se pode ver pessoalmente para falar. Ademais, o texto pode ser copiado e replicado, e então pode ir a vários lugares ao mesmo tempo, e sobreviver ao próprio autor, o que uma pessoa não pode fazer. Por isso os Apóstolos e discípulos escreveram o que está no nosso NT, especialmente a pessoas e comunidades distantes e necessitadas de instrução, àqueles que não podiam visitar, quando o apóstolo encontrava-se encarcerado e impedido de pregar pessoalmente etc.


As Cartas (Epístolas) de São Paulo atestam isso muito claramente. Paulo escreve referindo-se a uma visita pretérita (1 Co 2,1, 2 Ts 2,5) ou ao desejo de visitar a comunidade ou pessoa destinatária (1 Co 16,5-9; 2 Co 12,14; Fl 2, 24, 1 Tm 3,14) e lamenta não poder falar pessoalmente (Rm 1, 13-15). Muitas de suas cartas são escritas da prisão (Ef 3,1, Fl 1,13, Cl 4,18, 2 Tm 2,9, Flm 1,10), quando o Apóstolo dos Gentios era, portanto, forçado a escrever ao invés de predicar oral e pessoalmente. Além disso, suas cartas são episódicas, tratam de assuntos atuais e urgentes da comunidade de que teve notícia, e que requerem orientação (1 Co 1,11.11,18, 1 Ts 3,6, 2 Ts 3,11, Gl 1,11). Elas não têm o aspecto de tratado ou de panfleto, de meios de ensinar para substituir sua pregação oral, amplamente narrada nos Atos dos Apóstolos, mas são apenas um meio de suprir sua inevitável ausência quando assuntos urgentes demandam seu posicionamento.


Mesmo nos Evangelhos encontramos traços dessa escrita episódica e secundária em relação à atividade pregadora oral e pessoal. 


São Lucas incia o seu Evangelho com um endereçamento à maneira de uma carta a alguém que já conhecia a Boa Nova, expressamente referindo à finalidade de reforçar a sua fé (Lc 1,3-4). O Evangelho de São João foi, segundo a opinião praticamente unânime dos estudiosos, o último a ser escrito, é claramente o Evangelho da maturidade do Apóstolo, e em 20,31 o autor deixa transparecer sua intenção de reforçar a fé daquele que o ler; e, no versículo final, o Apóstolo adverte a limitação do que foi escrito. De fato, pela data provável de redação, João devia ser idoso, com mais de 80 anos, donde a pregação oral e pessoal a lugares distantes era inviável. Ademais, é sabido que esse grande apóstolo, escreveu o livro do Apocalipse exilado na ilha de Patmos.


Mesmo o Evangelho de Marcos, o mais breve e direto, que se acredita tenha sido o primeiro dos quatro a ser escrito (ainda assim, provavelmente após as primeiras cartas paulinas), seria, segundo o antigo testemunho de Papias (Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica III,39) e efetivamente parece, o resumo (memórias como diz Papias) da pregação de São Pedro Apóstolo, a real testemunha ocular dos acontecimentos narrados. Portanto, um documento escrito para que elementos importantes dessa pregação não se perdessem, mas certamente não uma transcrição de toda a pregação ou de todo o conhecimento de São Pedro.


O próprio encerramento dos Evangelhos de Marcos e de Mateus, destacando o comissionamento (“ide, pregai”, Mc 16,15), assim como a atividade missionária (“pregaram por todas as partes”, Mc 16,20), mostra-nos não apenas secundarem estes textos à pregação, como já referimos, mas a intenção do escrito de suportar essa atividade, inclusive “credenciando” o pregador como enviado de Jesus Cristo, enviado de Deus, que os enviou expressamente no final de sua missão na Terra.


Paralelamente, enquanto o NT nada menciona da escrita dos textos, muito menciona da pregação oral, e de como essa pregação foi sendo repassada por novos comissionados constituídos pelos Apóstolos. Pois além do “ide, pregai”, dos Evangelhos, vemos a constituição de homens de Deus para serem chefes e servos das igrejas locais (bispos, presbíteros, diáconos, como em At 14,23; 20,28; 21,8, Fl 1,1, Cl 1,7; 1 Tm 3; 4,14, Tito 1,5-9, 1 Pd 5,1, 3 Jo 1,1 e outros), e a ordem de transmitir a outros o que foi recebido (2 Tm 2,2).


Ademais, dada essa escrita episódica, por diversos autores, em diversos tempos e lugares, de diversos textos independentes, que circularam separados inicialmente, é impossível que qualquer desses textos determinasse aos fiéis cristãos que se ativessem somente à Palavra escrita.


Com efeito, no momento em que a maioria dos textos do NT era escrita, nada mais que o Antigo Testamento, ou apenas alguns poucos textos do Novo, estavam em circulação. De fato, toda referência à Escritura nos textos do NT refere-se aos textos do Antigo Testamento.


A própria formação do corpo do Novo Testamento, com a definição do seu conjunto (cânon) apenas viria depois, tendo sido motivo de amplo debate em todo o século IV, com o Concílio de Roma  (382), o Sínodo de Hipona (393), o Concílio de Cartago (397) etc.


Assim, cabe insistir, é impossível que esses textos determinassem ao leitor ater-se ao que está escrito, em poucos, parciais, raros e indeterminados textos na época, ao invés do que era rica, oral e vivamente pregado pelos Apóstolos e seus sucessores.


Quando lemos na Bíblia, na segunda carta que São Paulo escreveu a Timóteo, que “Toda a Escritura é divinamente inspirada, e proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça” (2 Timóteo 3, 16), a Escritura aí referida abrange apenas o Antigo Testamento, que era o que já existia e que Timóteo conhecia. A mensagem do Evangelho era quase que exclusivamente oral, pois é na mesma carta que São Paulo diz a Timóteo “o que de mim, entre muitas testemunhas, ouviste, confia-o a homens fiéis, que sejam idôneos para também ensinarem os outros” (2 Timóteo 2, 2), a definição de Tradição Apostólica. 


São Paulo, em sua pregação, sempre mostrava que a Escritura (o Antigo Testamento até então) aponta para Cristo. E aqui São Paulo ensina, acertadamente, que a Escritura (Antigo Testamento) é útil e importante, pois ela prepara o cristão para receber o Evangelho, o anúncio da Boa Nova da Salvação operada pelo Cristo Jesus, e, assim, o prepara para poder ensinar, convencer e mesmo corrigir a outros (2 Timóteo 3,17), que é, na essência, o que São Paulo pede a São Timóteo: “Que pregues a palavra, instes a tempo e fora de tempo, redarguas, repreendas, exortes, com toda a longanimidade e doutrina” (2 Timóteo 4,2). Portanto, trata-se aqui de instruir a São Timóteo de que o texto do Antigo Testamento deveria ser aprofundado e utilizado para difundir e defender o Evangelho proclamado, ainda mais que, nesse momento, Timóteo não pode contar com a presença de São Paulo, que já se encontra encarcerado. E São Paulo não está advertindo Timóteo de que nada mais a não ser a Escritura deve ser considerado, até porque os seus ensinamentos ainda não faziam parte da Escritura.


Quando lemos na Bíblia que nada deve ser acrescentado ou subtraído deste livro (Apocalipse 22,18-19), tal texto está se referindo ao próprio livro em que isso está escrito. Os livros da Bíblia não circulavam todos juntos como um só volume para que toda a Bíblia fosse referida como “este livro”.


Do mesmo modo, quando lemos na Bíblia que ninguém deve pregar um evangelho diferente (Gálatas 1,6-9), o texto não está se referindo aos quatro evangelhos canônicos que estavam longe de estar todos escritos (acredita-se que este seja um dos primeiros textos neotestamentários). O texto se opõe à má notícia trazida pelos judaizantes, ou legalistas, que procuravam impor aos gregos convertidos a Lei de Moisés como se fosse condição para a salvação em Cristo. A Lei de Moisés, que os judeus cumpriam, impunha vários sacrifícios e rituais, e São Paulo pregava que isso não era necessário, pois a salvação vem agora por Jesus Cristo, e não dos sacrifícios e rituais dos judeus (ver da mesma Carta aos Gálatas, os capítulos 3 a 5). De fato, essa má notícia é contrária à Boa Nova da Salvação pela Graça dada por Nosso Senhor, um verdadeiro retrocesso em relação à conquista da Salvação pelo sacrifício do Cristo.


Outros textos bíblicos e peculiaridades do NT, como a reiterada remissão ao Antigo Testamento por Nosso Senhor para se referir à sua missão (Lc 4,16-21), responder aos que o questionavam (Jo 5,39), e até mesmo ao tentador no deserto (Mt 4,1-11), a consulta dos bereianos ao AT para verificar se as coisas eram assim (At 17,11) etc., também não sustentam o Sola Scriptura


Com efeito, o argumento baseado nesses textos funda-se principalmente no entendimento equivocado do que seja a questão do Sola Scriptura. A antítese do Sola Scriptura faz-se com a exclusão do “Sola”, não do “Scriptura”. Não se rejeita a Escritura, que continua inspirada, inerrante e normativa, em conjunto com a Tradição Apostólica e o Magistério da Igreja Católica; muito ao contrário, rejeita-se o seu isolamento, e consequentemente sua interpretação privada e livre, o que leva ao subjetivismo e à distorção, e, enfim, à desunião do Corpo de Cristo que é a Igreja.


Os textos em questão nos dizem que a Escritura, mais especificamente o Antigo Testamento, é normativo, e nele encontramos a revelação que o Cristo veio cumprir. A Escritura é Palavra de Deus, sempre foi e continua sendo. Por meio dela cabe ensinar, corrigir, responder, como Nosso Senhor fez. E nela se encontra a identidade de Jesus de Nazaré como o Cristo, o Messias.


Além disso, a Tradição Apostólica e a Igreja, com sua Autoridade que é empenhada no Magistério, vêm do Cristo, partem dele para os Apóstolos, e prosseguem com seus sucessores. Evidentemente Jesus não poderia citar o que ainda não existia.


Nem cabe dizer que em Mt 15, 6, Nosso Senhor Jesus Cristo proscreveu a Tradição. Primeiro porque a Tradição Apostólica ainda não existia. Segundo porque as tradições rabínicas existentes, de fonte e autoridade completamente diferentes da Tradição Apostólica, eram múltiplas e conflituosas (fariseus, saduceus, essênios e outros). Terceiro, porque o que Nosso Senhor repreende, conforme se constata de uma leitura atenta do texto em seu contexto (versículos 1 a 20), não é nem mesmo a existência de tradições, mas o abuso delas para, sem cumprir o que Deus determina, fazer dela meio de alcançar fins egoístas; numa palavra: Jesus repreende a hipocrisia.


Mesmo o trecho da Bíblia que diz “aprendais a não ir além do que está escrito” (1 Co 4,6) não se presta a sustentar o Sola Scriptura. O fato é esse trecho pois mais parece um acréscimo, uma nota marginal que um copista incluiu no texto, conforme a Bíblia de Jerusalém observa. Por outro lado, supondo ser realmente parte do texto original, tudo indica que a expressão “o que está escrito” não se referiria à Escritura, pois Paulo sempre cita um trecho da Escritura quando a ela se refere pela expressão “está escrito”, como, na mesma carta em 1,19; 1,31; 2,9; 3,19; 9,9; 10,7; 14,21; 15,45; 15,54.


Em todo caso, pelo contexto, não está em discussão aqui uma questão de fontes do conhecimento da revelação, mas a divisão entre os cristãos de Corinto, que procuravam, na fama de seus mestres, motivos para orgulho.


Com efeito, o versículo completo diz: “E eu, irmãos, apliquei estas coisas, por semelhança, a mim e a Apolo, por amor de vós; para que em nós aprendais a não ir além do que está escrito, não vos ensoberbecendo a favor de um contra outro”. Assim, supondo tratar-se de texto original que realmente faz  remissão à Bíblia, Paulo “está dizendo que, considerando o que ele teve que dizer acerca de Apolo e de si próprio, eles [os coríntios] aprenderão a ideia escriturística da subordinação do homem. Uniformemente a Bíblia exalta a Deus. A ênfase dada pelos coríntios às pessoas dos mestres significava que eles estavam tendo os homens em demasiado alta consideração” (Leon Morris, “I Coríntios: introdução e comentário”, Série Cultura Bíblica, Editora Vida Nova). 


Ademais, se Paulo dissesse aqui para ater-se ao que está escrito no AT (a Bíblia então existente), toda a sua pregação deveria ser desconsiderada. Além do que, se dissesse para rejeitar a Tradição, estaria isso em conflito com o que ele ensinou em 2 Tm 2,2.


Cabe destacar que se trata, reconhecidamente, de um dos textos mais enigmáticos do Novo Testamento, e, por isso mesmo, sozinho, não pode sustentar o Sola Scriptura, pois este apregoa que “as coisas que precisam ser conhecidas, cridas e obedecidas para a salvação estão claramente propostas e explicadas em uma passagem ou outra” (Confissão de Fé Batista de Londres de 1689). Então, se o Sola Scriptura deve ser crido, deveria estar enunciado claramente em algum outro lugar da Escritura, e não obscuramente num texto completamente alheio a essa questão.


Desse modo, com esses exemplos, logo que se vê que os “versículos de prova” do Sola Scriptura bem examinados e contextualizados, não o confirmam, antes exemplificam o que, lógica e historicamente foi afirmado, que a maneira como foi redigido e compilado o Novo Testamento impossibilita que este contenha o ensinamento da doutrina-princípio do Sola Scriptura


Entretanto, se Nosso Senhor Jesus Cristo não nos deixou nada escrito, não deu ordens para que escrevessem seus ensinamentos, e se mesmo seus apóstolos, e ainda os discípulos deles, escreveram episodicamente esparsos textos de modo resumido e secundário (em relação à pregação), pois mais dedicados à pregação oral e pessoal ordenada que foi por Nosso Senhor Jesus Cristo, como pretendia o Senhor que a sua Palavra chegasse a todos os povos e línguas de todos os tempos?


Nosso Senhor não nos deu um livro, Ele nos deixou o seu Corpo que é a Igreja, e, diferentemente do Sola Scriptura, isso está claríssimo no Novo Testamento.


De fato, vemos que o Senhor institui a Igreja e lhe confere uma liderança, São Pedro, que se chamava Simão, e foi o único apóstolo a que Nosso Senhor Jesus Cristo mudou o nome (para Kefas, pedra): “Pois também eu te digo que tu és Pedro (Kefas), e sobre esta pedra (kefas) edificarei a minha igreja”; e sobre essa Igreja Ele assegura “as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mateus 16,18).


Nosso Senhor Jesus Cristo confere autoridade à sua Igreja: “E, se não as escutar, dize-o à igreja; e, se também não escutar a igreja, considera-o como um gentio e publicano. Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu” (Mateus 18,17-18)


Ele também assegurou que ela seria assistida pelo Espírito Santo: “Ainda tenho muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora. Mas, quando vier aquele Espírito de verdade, ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará o que há de vir” (João 16,12-13). E que a assistirá “até a consumação dos séculos” (Mateus 28,20)


Esta Igreja que possui bispos, representantes visíveis, e pela qual o Cristo deu seu sangue preciosíssimo: “Olhai, pois, por vós, e por todo o rebanho sobre que o Espírito Santo vos constituiu bispos, para apascentardes a igreja de Deus, que ele resgatou com seu próprio sangue” (Atos 20,28).


São Paulo atesta que a Igreja é o corpo, do qual o Cristo é a cabeça: “... Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo. … a igreja está sujeita a Cristo, (…) Vós, maridos, amai vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela, para a santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela palavra, para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e irrepreensível. (...) nunca ninguém odiou a sua própria carne; antes a alimenta e sustenta, como também o Senhor à igreja; porque somos membros do seu corpo, da sua carne, e dos seus ossos. (...) Grande é este mistério; digo-o, porém, a respeito de Cristo e da igreja.” (Efésios 5,23-32).


De fato, São Paulo afirma que a casa de Deus (ou seja, a família de Deus, como normalmente o termo casa é empregado na Bíblia) “é a igreja do Deus vivo, a coluna e firmeza da verdade”(1 Timóteo 3,15)


São Paulo também atesta que é pela Igreja que a Palavra de Deus será proclamada: “E demonstrar a todos qual seja a comunhão do mistério, que desde os séculos esteve oculto em Deus, que tudo criou por meio de Jesus Cristo; para que agora, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus seja conhecida dos principados e potestades nos céus, segundo o eterno propósito que fez em Cristo Jesus nosso Senhor” (Efésios 3,9-11)


O Apóstolo assevera o compromisso de todo cristão com a Igreja, repelindo o individualismo da salvação pessoal tão apregoado hoje em dia a ponto de crescer rapidamente o movimento dos desigrejados: “Assim também vós, como desejais dons espirituais, procurai abundar neles, para edificação da igreja” (1 Coríntios 14,12).


Assim, enquanto nada se fala de escrever (algo como “escrevam meus ensinamentos e o enviem até os confins do mundo”), enquanto nenhum único trecho da Bíblia pode suportar a doutrina da exclusividade da Palavra escrita, a Bíblia, textualmente, ordena a pregação (pessoal e oral como a de Nosso Senhor Jesus Cristo), ordena a transmissão mediante a tradição oral (“E o que de mim, entre muitas testemunhas, ouviste, confia-o a homens fiéis, que sejam idôneos para também ensinarem os outros”, 2 Timóteo 2,2), e para isso mostra que Nosso Senhor Jesus Cristo instituiu a Igreja, com liderança, com autoridade, corpo de Cristo que é sua cabeça, a qual dá firmeza e coerência atestando a verdade, corporação visível de homens constituídos (bispos, presbíteros, diáconos) a serviço do povo fiel em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo que a constituiu, e com a edificação da qual todo cristão deve se comprometer.


Lembremo-nos da Palavra “Quem vos ouve a vós, a mim me ouve; e quem vos rejeita a vós, a mim me rejeita; e quem a mim me rejeita, rejeita aquele que me enviou” (Lucas 10,16). Quem é o enviado senão a Igreja que é o corpo visível de Cristo, família de Deus, certeza da verdade?


Por outro lado, também nos disse o Mestre: “Quem não é comigo é contra mim; e quem comigo não ajunta, espalha” (Mateus 12,30). Os irmãos protestantes que me perdoem, mas desde que surgiu o Protestantismo ele apenas tem espalhado os cristãos em um número cada vez mais numeroso de seitas conflitantes.


E, conforme a Escritura, “se um reino se dividir contra si mesmo, tal reino não pode subsistir” (Marcos 3,24). Embora o Protestantismo como um todo seja hoje algo que, humanamente falando, é impossível erradicar, cada ramo protestante vai se dividindo em facções cada vez menores, e se enfraquecendo cada vez mais, e assim enfraquecendo o próprio Cristianismo, dando espaço ao relativismo e ao mundanismo. Que é a Igreja Luterana hoje, diante de tantas seitas protestantes surgidas depois de Lutero? Onde está a Igreja Calvinista fundada em Genebra? Quantas sub igrejas existem sob o título de Batista, Presbiteriana etc? Quantas denominações neopentecostais? Definitivamente, no Protestantismo não há “Um só Senhor, uma só fé, um só batismo” (Efésios 4,5), não há uma doutrina, não há uma norma de conduta, mas contradições e mais contradições.


Até mesmo Lutero, ainda em sua época chegou a dizer “Este não escuta sobre o Batismo, aquele nega os sacramentos e aquele outro coloca um mundo entre este e o último dia; alguns ensinam que Cristo não é Deus, alguns dizem isto e alguns dizem aquilo; há tantas seitas e credos quanto o número de cabeças. Ninguém é tão rude que, tendo sonhos e fantasias, não possa pensar que foi inspirado pelo Espírito Santo, devendo ser um profeta” (De Wette 3,61; citado em O'Hare, “Facts about Luther”, p. 208).


Por outro lado, também estão nas Escrituras as palavras de Gamaliel: “E agora digo-vos: Dai de mão a estes homens, e deixai-os, porque, se este conselho ou esta obra é de homens, se desfará, mas, se é de Deus, não podereis desfazê-la; para que não aconteça serdes também achados combatendo contra Deus” (Atos 5, 38-39). E, assim, enquanto o Protestantismo que nasceu com o discurso de um retorno à verdadeira fé cristã, baseado na Bíblia, se divide e se esfacela em milhares de seitas antagônicas, a única Igreja Católica Apostólica Romana, prossegue, sempre combativa e sempre muito combatida por todas as forças deste mundo, mas segue em frente, e continua fazendo jus a seu título de Católica, ou seja, universal, pois além de congregar a grande maioria dos cristãos, é a única que se estende de um lado ao outro do mundo, e permanece a referência do que é o Cristianismo, de tal modo que todas as outras igrejas se classificam perante ela (protestantes, ortodoxas separadas, cismáticas, independentes etc.).


Enfim, o Novo Testamento em particular, e a Bíblia de uma maneira geral, são importantíssimos, preciosíssimos livros sagrados que sustentam e reforçam a nossa fé, devem ser lidos, estudados, apreciados, devem fazer parte de nosso cotidiano. Mas se inserem num contexto mais amplo, da Tradição Apostólica, isto é, do ensinamento que se transmitiu de boca em boca, do Mestre aos Apóstolos, dos Apóstolos aos discípulos, desses para os próximos, até hoje. Noutras palavras, Tradição transmitida na vida da Igreja. A Bíblia é parte dessa Tradição, mas, por definição, dada pelo contexto de sua redação e história, não a esgota.


Pela Bíblia somos instruídos na vontade de Deus, mas na Igreja e com a Igreja, à qual a Bíblia pertence, e a quem pertence a autoridade de corpo e enviado do Cristo. Nosso Senhor Jesus Cristo não nos deu um livro, deu-nos Seu Corpo, Sua Igreja.


* Obs.: Citações bíblicas da versão Almeida Revista e Corrigida ou da versão Almeida Corrigida Fiel, unicamente para evitar qualquer acusação de usar traduções católicas, supostamente “tendenciosas”.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Verdade sobre a Inquisição Espanhola (Thomas F. Madden)



A cena é em uma sala simples com uma porta à esquerda. Um jovem agradável, atormentado por perguntas tediosas e irrelevantes, exclama em tom frustrado: “Eu não esperava um tipo de Inquisição Espanhola”. De repente, a porta se abre para revelar o cardeal Ximinez ladeado pelo cardeal Fang e pelo cardeal Biggles. “Ninguém espera a inquisição espanhola!” Ximinez grita. “Nossa principal arma é surpresa … surpresa e medo … medo e surpresa … Nossas duas armas são medo e surpresa … e eficiência implacável … Nossas três armas são medo, surpresa e eficiência inescrupulosa…. e uma devoção quase fanática ao papa … Nossas quatro … não … Entre nossas armas … entre nosso armamento – existem elementos como o medo, a surpresa … Eu entrarei de novo. ”
Qualquer pessoa que não viva sob uma rocha nos últimos 30 anos provavelmente reconhecerá essa famosa cena do Flying Circus do Monty Python. Nesses esboços, três inquisidores inaptos, vestidos de vermelho-escarlate, torturam suas vítimas com instrumentos como travesseiros e cadeiras confortáveis. A coisa toda é engraçada porque o público sabe muito bem que a Inquisição Espanhola não era nem inepta nem confortável, mas implacável, intolerante e mortal. Não é preciso ter lido The Pit and the Pendulum, de Edgar Allan Poe, para ter ouvido falar das masmorras escuras, dos religiosos sádicos e das terríveis torturas da Inquisição Espanhola. O cavalete, a dama de ferro, as fogueiras em que a Igreja Católica despejou seus inimigos aos milhões: todos esses são ícones familiares da Inquisição Espanhola firmados em nossa cultura.
Esta imagem da Inquisição Espanhola é útil para aqueles que têm pouco amor pela Igreja Católica. Qualquer um que deseje bater na Igreja sobre a cabeça e os ombros não demorará muito para agarrar seus dois porretes favoritos: as Cruzadas e a Inquisição Espanhola. Eu lidei com as Cruzadas em uma edição anterior da CRISIS (ver “A História Real das Cruzadas”, abril de 2002). Agora para o outro porrete.
Para entender a Inquisição Espanhola, que começou no final do século XV, devemos olhar brevemente para sua antecessora, a Inquisição medieval. Antes de fazermos, porém, vale a pena ressaltar que o mundo medieval não era o mundo moderno. Para as pessoas medievais, a religião não era algo que se fazia na igreja. Foi sua ciência, sua filosofia, sua política, sua identidade e sua esperança de salvação. Não era uma preferência pessoal, mas uma verdade permanente e universal. A heresia, então, atingia o coração dessa verdade. Ela condenava o herege, colocava em perigo as pessoas próximas a ele e destruia o tecido da comunidade. Os europeus medievais não estavam sozinhos nessa visão. Foi compartilhado por inúmeras culturas ao redor do mundo. A prática moderna da tolerância religiosa universal é em si mesma bastante nova e singularmente ocidental.
Líderes seculares e eclesiásticos da Europa medieval abordaram heresias de maneiras diferentes. A lei romana equiparava heresia a traição. Por quê? Porque o reinado foi dado por Deus, tornando assim a heresia um desafio inerente à autoridade real. Os hereges dividiam as pessoas, causando inquietação e rebelião. Nenhum cristão duvidava que Deus puniria uma comunidade que permitisse que a heresia criasse raízes e se espalhasse. Reis e plebeus, portanto, tinham boas razões para encontrar e destruir os hereges onde quer que os encontrassem – e eles o fizeram com entusiasmo.
Um dos mitos mais persistentes da Inquisição é que foi uma ferramenta de opressão imposta a europeus indispostos por uma Igreja faminta por poder. Nada poderia estar mais errado. Na verdade, a Inquisição trouxe ordem, justiça e compaixão para combater as perseguições populares e seculares de hereges. Quando as pessoas de uma aldeia reuniram um herege suspeito e o levaram ao senhor local, como ele seria julgado? Como poderia um leigo analfabeto determinar se as crenças do acusado eram heréticas ou não? E como as testemunhas foram ouvidas e examinadas?
A Inquisição medieval começou em 1184, quando o papa Lúcio III enviou uma lista de heresias aos bispos da Europa e ordenou-lhes que desempenhassem um papel ativo para determinar se os acusados de heresia eram, de fato, culpados. Em vez de depender de tribunais seculares, senhores locais ou apenas multidões, os bispos deveriam fazer com que os hereges acusados em suas dioceses fossem examinados por clérigos instruídos usando as leis romanas de evidência. Em outras palavras, eles deveriam “inquirir” – assim, o termo “inquisição”.
Do ponto de vista das autoridades seculares, os hereges eram traidores de Deus e do rei e, portanto, mereciam a morte. Do ponto de vista da Igreja, no entanto, hereges foram ovelhas perdidas que se desviaram do rebanho. Como pastores, o papa e os bispos tinham o dever de trazer aquelas ovelhas de volta ao rebanho, assim como o Bom Pastor lhes havia ordenado. Assim, enquanto os líderes seculares medievais tentavam salvaguardar seus reinos, a Igreja estava tentando salvar almas. A Inquisição forneceu um meio para os hereges escaparem da morte e retornarem à comunidade.
A maioria das pessoas acusadas de heresia pela Inquisição medieval foi absolvida ou sua sentença suspensa. Aqueles que foram considerados culpados de grave erro foram autorizados a confessar seus pecados, fazer penitência e serem restaurados ao Corpo de Cristo. A suposição subjacente da Inquisição era que, como ovelhas perdidas, os hereges simplesmente se desviaram. Se, no entanto, um inquisidor determinou que uma determinada ovelha se afastou propositalmente do rebanho, não havia mais nada que pudesse ser feito. Os hereges não arrependidos ou obstinados foram excomungados e entregues às autoridades seculares. Apesar do mito popular, a Igreja não queimava hereges. Foram as autoridades seculares que consideraram a heresia uma ofensa capital. O simples fato é que a Inquisição medieval salvou milhares de pessoas inocentes (e até mesmo não tão inocentes) que, de outra forma, teriam sido assadas pelos senhores seculares ou pelo poder da multidão.
À medida que o poder dos papas medievais crescia, também crescia a extensão e a sofisticação da Inquisição. A introdução dos franciscanos e dominicanos no início do século XIII proporcionou ao papado um corpo de dedicados religiosos dispostos a dedicar suas vidas à salvação do mundo. Como sua ordem fora criada para debater com os hereges e pregar a fé católica, os dominicanos tornaram-se especialmente ativos na Inquisição. Seguindo os códigos de lei mais progressistas do dia, a Igreja no século 13 formou tribunais inquisitoriais respondendo a Roma em vez de bispos locais. Para garantir justiça e uniformidade, foram escritos manuais para funcionários inquisitoriais. Bernard Gui, mais conhecido hoje como o inquisidor fanático e maligno em O Nome da Rosa, escreveu um manual particularmente influente. Não há razão para acreditar que Gui tenha sido parecido com o seu retrato fictício.
No século XIV, a Inquisição representava as melhores práticas jurídicas disponíveis. Os funcionários da inquisição eram especialistas em direito e teologia treinados em universidades. Os procedimentos eram similares àqueles usados em inquisições seculares (nós os chamamos de “inquéritos” hoje, mas é a mesma palavra).
O poder dos reis aumentou dramaticamente no final da Idade Média. Os governantes seculares apoiaram fortemente a Inquisição porque a viam como uma maneira eficiente de garantir a saúde religiosa de seus reinos. No máximo os reis culparam a Inquisição por serem muito lenientes aos hereges. Como em outras áreas de controle eclesiástico, as autoridades seculares no final da Idade Média começaram a tomar a Inquisição, removendo-a da supervisão papal. Na França, por exemplo, funcionários reais assistidos por acadêmicos da Universidade de Paris assumiram o controle da Inquisição Francesa. Os reis justificaram isso com base na crença de que sabiam melhor do que o papa distante como lidar melhor com a heresia em seus próprios reinos.
Essas dinâmicas ajudariam a formar a Inquisição Espanhola – mas havia outras também. A Espanha foi em muitos aspectos bastante diferente do resto da Europa. Conquistada pela jihad muçulmana no século VIII, a península ibérica tinha sido um local de guerra quase constante. Como as fronteiras entre os reinos muçulmano e cristão mudaram rapidamente ao longo dos séculos, era do interesse da maioria dos governantes praticar um grau razoável de tolerância para outras religiões. A capacidade de muçulmanos, cristãos e judeus viverem juntos, chamada de convivencia pelos espanhóis, era uma raridade na Idade Média. De fato, a Espanha era o lugar mais diversificado e tolerante da Europa medieval. A Inglaterra expulsou todos os seus judeus em 1290. A França fez o mesmo em 1306. No entanto, na Espanha, os judeus prosperaram em todos os níveis da sociedade
Mas talvez fosse inevitável que as ondas de antissemitismo que varreram a Europa medieval acabassem por chegar à Espanha. Inveja, ganância e credulidade levaram a crescentes tensões entre cristãos e judeus no século XIV. Durante o verão de 1391, aglomerações urbanas em Barcelona e outras cidades se espalharam pelos bairros judeus, cercaram os judeus e deram a eles uma escolha de batismo ou morte. A maioria preferiu o batismo. O rei de Aragão, que fez o melhor que pôde para impedir os ataques, mais tarde lembrou aos seus súditos de doutrina da Igreja bem estabelecida sobre o assunto dos batismos forçados – eles não contam. Ele decretou que qualquer judeu que aceitasse o batismo para evitar a morte poderia retornar à sua religião.
Mas a maioria desses novos conversos decidiu permanecer católica. Havia muitas razões para isso. Alguns acreditavam que a apostasia os tornava impróprios para serem judeus. Outros temiam que retornar ao judaísmo os deixasse vulneráveis a futuros ataques. Outros ainda viram seu batismo como uma maneira de evitar o crescente número de restrições e tributos impostos aos judeus. Com o passar do tempo, os conversos se estabeleceram em sua nova religião, tornando-se tão piedosos quanto outros católicos. Seus filhos foram batizados no nascimento e criados como católicos. Mas eles permaneceram em um submundo cultural. Embora cristãos, a maioria dos conversos ainda falava, vestia-se e comia como judeus. Muitos continuaram a viver em bairros judeus, de modo a estar perto de membros da família. A presença de conversos teve o efeito de cristianizar o judaísmo espanhol. Isso, por sua vez, levou a um fluxo constante de conversões voluntárias para o catolicismo.
Em 1414, um debate foi realizado em Tortosa entre líderes cristãos e judeus. O próprio papa Bento XIII compareceu. Do lado cristão estava o médico papal, Jerônimo de Santa Fé, que havia se convertido recentemente do judaísmo. O debate provocou uma onda de novas conversões voluntárias. Só em Aragão, 3.000 judeus receberam o batismo. Tudo isso causou uma boa dose de tensão entre aqueles que permaneceram judeus e aqueles que se tornaram católicos. Os rabinos espanhóis, depois de 1391, haviam considerado conversos como judeus, uma vez que haviam sido forçados ao batismo. No entanto, em 1414, os rabinos enfatizaram repetidamente que os conversos eram de fato cristãos verdadeiros, uma vez que haviam voluntariamente saído do judaísmo.
Em meados do século XV, toda uma nova cultura converso estava florescendo na Espanha – judaica em etnia e cultura, mas católica na religião. Os conversos, sejam eles novos convertidos ou os descendentes de convertidos, orgulhavam-se enormemente dessa cultura. Alguns até afirmaram que eram melhores que os “velhos cristãos”, já que, como judeus, eram relacionados pelo sangue ao próprio Cristo. Quando o converso bispo de Burgos, Alonso de Cartagena, rezou a Ave Maria, ele dizia com orgulho: “Santa Maria, Mãe de Deus e minha parente de sangue, rogai por nós pecadores”.
A expansão da riqueza e do poder na Espanha levou a uma reação contrária, particularmente entre os velhos cristãos aristocráticos e de classe média. Eles se ressentiram da arrogância dos conversos e invejaram seus sucessos. Vários folhetos foram escritos demonstrando que virtualmente toda linhagem nobre na Espanha havia sido infiltrada por conversos. Teorias de conspiração anti-semitas abundaram. Os conversos, dizia-se, faziam parte de uma elaborada trama judaica para apoderar-se da nobreza espanhola e da Igreja Católica, destruindo ambos de dentro. Os conversos, segundo essa lógica, não eram cristãos sinceros, mas judeus secretos.
A erudição moderna demonstrou definitivamente que, como a maioria das teorias da conspiração, essa era pura imaginação. A grande maioria dos conversos eram bons católicos que simplesmente se orgulhavam de sua herança judaica. Surpreendentemente, muitos autores modernos – na verdade, muitos autores judeus – abraçaram essas fantasias anti-semitas. Hoje é comum ouvir que os conversos eram realmente judeus secretos, lutando para manter sua fé escondida sob a tirania do catolicismo. Até mesmo o American Heritage Dictionary descreve “converso” como “um judeu espanhol ou português que se converteu ao cristianismo no final da Idade Média para evitar a perseguição ou a expulsão, embora muitas vezes continuassem praticando o judaísmo em segredo”. Isso é simplesmente falso.
Mas a constante batida de acusações convenceu o rei Fernando e a rainha Isabela de que a questão dos judeus secretos deveria pelo menos ser investigada. Respondendo ao seu pedido, o Papa Sisto IV emitiu uma bula em 1 de novembro de 1478, permitindo que a coroa formasse um tribunal inquisitorial consistindo de dois ou três padres com mais de 40 anos. Como era agora o costume, os monarcas teriam autoridade completa sobre os inquisidores e a inquisição. Fernando, que tinha muitos judeus e conversos em sua corte, não ficou inicialmente muito entusiasmado com a coisa toda. Dois anos se passaram antes que ele finalmente nomeasse dois homens. Assim começou a Inquisição Espanhola.
O rei Fernando parece ter acreditado que o inquérito iria fazer pouco. Ele estava errado. Um barril de ressentimento e ódio explodiu em toda a Espanha, quando os inimigos dos conversos – tanto cristãos quanto judeus – saíram da toca para denunciá-los. ressentimento e oportunismo foram os principais motivadores. No entanto, o volume de acusações sobrecarregou os inquisidores. Eles pediram e receberam mais assistentes, mas quanto maior a Inquisição se tornava, mais acusações recebiam. Por fim, até Fernando estava convencido de que o problema dos judeus secretos era real.
Neste estágio inicial da Inquisição Espanhola, cristãos e judeus antigos usavam os tribunais como uma arma contra seus inimigos conversos. Como o único propósito da Inquisição era investigar conversos, os cristãos antigos não tinham nada a temer com isso. Sua fidelidade à fé católica não estava sob investigação (embora estivesse longe de ser pura). Quanto aos judeus, eles eram imunes à Inquisição. Lembre-se, o propósito de uma inquisição era encontrar e corrigir as ovelhas perdidas do rebanho de Cristo. Não tinha jurisdição sobre outros rebanhos. Aqueles que obtiverem sua história da História do Mundo de Mel Brooks, Parte I, talvez fiquem surpresos em saber que todos aqueles judeus que sofrem várias torturas nas masmorras da Inquisição Espanhola são nada mais que um produto da fértil imaginação de Brooks. Os judeus da Espanha não tinham nada a temer da Inquisição Espanhola.
Nos primeiros anos em rápida expansão, houve muitos abusos e confusões. A maioria dos conversos acusados foi absolvida, mas não todos. Queimadas bem divulgadas – muitas vezes por causa do falso testemunho falso – justificadamente amedrontavam outros conversos. Aqueles com inimigos muitas vezes fugiram da cidade antes que pudessem ser denunciados. Onde quer que olhassem, os inquisidores encontravam mais acusadores. Quando a Inquisição se expandiu para Aragão, os níveis de histeria alcançaram novas alturas. O Papa Sisto IV tentou acabar com isso. Em 18 de abril de 1482, ele escreveu aos bispos da Espanha:

Em Aragão, Valência, Maiorca e Catalunha, a Inquisição foi, durante algum tempo, movida não pelo zelo pela fé e pela salvação das almas, mas pela luxúria. Muitos cristãos verdadeiros e fiéis, no testemunho de inimigos, rivais, escravos e outras pessoas inferiores e até menos apropriadas, foram, sem qualquer prova legítima, lançadas em prisões seculares, torturadas e condenadas como heréticos recaídos, privados de seus bens e propriedades e entregues ao braço secular para serem executadas, para o perigo das almas, estabelecendo um exemplo pernicioso e causando desgosto a muitos.

Sisto ordenou que os bispos assumissem um papel direto em todos os tribunais futuros. Eles deveriam assegurar que as normas de justiça bem estabelecidas da Igreja fossem respeitadas. O acusado deveria ter um advogado e o direito de apelar para Roma.
Na Idade Média, os comandos do papa teriam sido obedecidos. Mas esses dias foram embora. O rei Fernando ficou indignado quando ouviu a carta. Ele escreveu para Sisto, sugerindo abertamente que o papa havia sido subornado com ouro converso.

Coisas me disseram, Santo Padre, que, se for verdade, parece merecer o maior assombro. . . Para esses rumores, no entanto, não acreditamos porque parecem ser coisas que de nenhuma maneira teriam sido concedidas por Sua Santidade, que tem o dever com a Inquisição. Mas se por acaso concessões foram feitas através da persuasão persistente e astuta dos conversos, eu pretendo nunca deixar que elas tenham efeito. Tome cuidado, portanto, para não deixar que o assunto vá além, revogue quaisquer concessões e nos confie com o cuidado desta questão.

Esse foi o fim do papel do papado na Inquisição Espanhola. De agora em diante seria um braço da monarquia espanhola, separado da autoridade eclesiástica. É estranho, então, que a Inquisição Espanhola seja tantas vezes descrita hoje como um dos grandes pecados da Igreja Católica. A Igreja Católica, como instituição, não teve quase nada a ver com isso.
Em 1483, Fernando nomeou Tomás de Torquemada como inquisidor-geral para a maior parte da Espanha. Foi tarefa de Torquemada estabelecer regras de evidência e procedimento para a Inquisição, bem como estabelecer filiais nas principais cidades. Sisto confirmou a consulta, esperando que isso trouxesse alguma ordem para a situação.
Infelizmente, o problema só virou bola de neve. Esse foi um resultado direto dos métodos empregados pela antiga Inquisição espanhola, que se desviaram significativamente dos padrões da Igreja. Quando os inquisidores chegavam a uma determinada área, anunciavam um Edito da Graça. Este era um período de 30 dias em que judeus secretos podiam voluntariamente se manifestar, confessar seus pecados e fazer penitência. Este era também um momento para outros com informações sobre os cristãos praticando o judaísmo em segredo para torná-los conhecidos para o tribunal. Aqueles considerados culpados após os 30 dias decorridos poderiam ser queimados na fogueira.
Para os conversos, então, a chegada da Inquisição certamente focalizou a mente. Eles geralmente tinham muitos inimigos, qualquer um dos quais poderia decidir dar falso testemunho. Ou talvez suas práticas culturais fossem suficientes para condenação? Quem sabia? A maioria dos conversos, portanto, fugiam ou se alinhava para confessar. Aqueles que não o fizeram arriscaram uma investigação na qual qualquer tipo de boato ou evidência, não importando a sua idade ou suspeita, era aceitável.
A oposição na hierarquia da Igreja Católica à Inquisição Espanhola só aumentou. Muitos eclesiásticos salientaram que era contrário a todas as práticas aceitas para os hereges serem queimados sem instrução na fé. Se os conversos eram culpados, era apenas ignorância, não heresia intencional. Numerosos clérigos nos níveis mais altos reclamaram a Fernando. A oposição à Inquisição Espanhola também continuou em Roma. O sucessor de Sisto, Inocêncio VIII, escreveu duas vezes ao rei pedindo maior compaixão, misericórdia e clemência para os conversos – mas sem sucesso.
À medida que a Inquisição Espanhola acelerou, os envolvidos ficaram cada vez mais convencidos de que os judeus da Espanha estavam ativamente seduzindo os conversos de volta à sua antiga fé. Foi uma ideia tola, não mais real do que as teorias conspiratórias anteriores. Mas Fernando e Isabela foram influenciados por isso. Ambos os monarcas tinham amigos e confidentes judeus, mas também sentiam que seu dever para com seus súditos cristãos os impelia a remover o perigo. Começando em 1482, eles expulsaram os judeus de áreas específicas onde o problema parecia maior. Durante a década seguinte, porém, eles estavam sob crescente pressão para remover a ameaça percebida. A Inquisição Espanhola, argumentou-se, nunca conseguiria trazer os conversos de volta ao rebanho enquanto os judeus minavam seu trabalho. Finalmente, em 31 de março de 1492, os monarcas emitiram um decreto expulsando todos os judeus da Espanha.
Fernando e Isabela esperavam que seu decreto resultasse na conversão da maioria dos judeus remanescentes em seu reino. Eles estavam em grande parte corretos. Muitos judeus em altas posições, incluindo os da corte real, aceitaram o batismo imediatamente. Em 1492, a população judaica da Espanha era de cerca de 80.000. Cerca de metade foram batizados e, assim, mantiveram suas propriedades e meios de subsistência. Os demais partiram, mas muitos deles acabaram retornando à Espanha, onde receberam o batismo e tiveram suas propriedades restauradas. No que dizia respeito à Inquisição Espanhola, a expulsão dos judeus significava que o número de conversos era agora muito maior.
Os primeiros 15 anos da Inquisição Espanhola, sob a direção de Torquemada, foram os mais mortíferos. Aproximadamente 2.000 conversos foram colocados nas chamas. Por volta de 1500, no entanto, a histeria se acalmara. O sucessor de Torquemada, o cardeal arcebispo de Toledo, Francisco Jiménez de Cisneros, trabalhou arduamente para reformar a Inquisição, removendo as más maçãs e os procedimentos de reforma. Cada tribunal recebeu dois inquisidores dominicanos, um consultor jurídico, um policial, um promotor e um grande número de assistentes. Com exceção dos dois dominicanos, todos eles eram oficiais leigos reais. A Inquisição Espanhola foi em grande parte financiada por confiscos, mas estes não eram freqüentes ou grandes. De fato, mesmo em seu auge, a Inquisição estava sempre apenas cumprindo suas metas.
Após as reformas, a Inquisição Espanhola teve muito poucos críticos. Contando com profissionais jurídicos bem-educados, foi um dos órgãos judiciais mais eficientes e compassivos da Europa. Nenhum tribunal importante na Europa executou menos pessoas do que a Inquisição Espanhola. Esta era uma época, afinal de contas, onde danificar arbustos em um jardim público em Londres levava à pena de morte. Em toda a Europa, as execuções eram eventos cotidianos. Mas não é assim com a Inquisição Espanhola. Em seus 350 anos de vida, apenas cerca de 4.000 pessoas foram colocadas na estaca. Compare isso com a caça às bruxas que se espalhou pelo resto da Europa católica e protestante, na qual 60.000 pessoas, a maioria mulheres, foram assadas. A Espanha foi poupada dessa histeria precisamente porque a Inquisição Espanhola a deteve na fronteira. Quando as primeiras acusações de bruxaria surgiram no norte da Espanha, a Inquisição enviou seu pessoal para investigar. Esses estudiosos jurídicos treinados não encontraram nenhuma evidência crível para os sabbaths das bruxas, a magia negra ou a torra de bebê. Também foi notado que aqueles que confessavam a feitiçaria tinham uma curiosa incapacidade de voar através dos buracos de fechadura. Enquanto os europeus jogavam as mulheres em fogueiras com abandono, a Inquisição Espanhola fechou a porta contra essa insanidade. (Para o registro, a Inquisição Romana também deteve a mania de bruxa de infectar a Itália.)
E as masmorras escuras e câmaras de tortura? A Inquisição Espanhola tinha cadeias, é claro. Mas elas não eram especialmente escuros nem parecidas com masmorras. De fato, no que diz respeito às prisões, elas foram amplamente consideradas as melhores da Europa. Havia até mesmo casos de criminosos na Espanha propositalmente blasfemando para serem transferidos para as prisões da Inquisição. Como todos os tribunais da Europa, a Inquisição Espanhola usou tortura. Mas isso acontecia com menos frequência que outros tribunais. Pesquisadores modernos descobriram que a Inquisição Espanhola aplicava tortura em apenas 2% de seus casos. Cada instância de tortura foi limitada a um máximo de 15 minutos. Em apenas 1% dos casos, a tortura foi aplicada duas vezes e nunca pela terceira vez.
A conclusão inescapável é que, pelos padrões de seu tempo, a Inquisição Espanhola foi positivamente esclarecida. Essa foi a avaliação da maioria dos europeus até 1530. Foi então que a Inquisição Espanhola desviou sua atenção dos conversos para a nova Reforma Protestante. O povo da Espanha e seus monarcas estavam determinados que o protestantismo não se infiltraria em seu país como tinha na Alemanha e a França. Os métodos da Inquisição não mudaram. Execuções e tortura continuavam raras. Mas seu novo alvo mudaria para sempre sua imagem.
Em meados do século XVI, a Espanha era o país mais rico e poderoso da Europa. O rei Filipe II viu a si mesmo e seus compatriotas como fiéis defensores da Igreja Católica. Menos ricos e menos poderosos eram as áreas protestantes da Europa, incluindo a Holanda, o norte da Alemanha e a Inglaterra. Mas elas tinham uma nova arma poderosa: a imprensa. Embora os espanhóis derrotassem os protestantes no campo de batalha, perderiam a guerra de propaganda. Estes foram os anos em que a famosa “Lenda Negra” da Espanha foi forjada. Inúmeros livros e panfletos saíram das imprensas do norte acusando o Império Espanhol de depravação desumana e horríveis atrocidades no Novo Mundo. Espanha opulenta foi lançada como um lugar de escuridão, ignorância e maldade. Embora os estudiosos modernos tenham descartado há muito tempo a Lenda Negra, ela ainda permanece muito viva hoje. Rápido: Pense em um bom conquistador.
A propaganda protestante que almejava a Inquisição Espanhola extraiu generosamente da Lenda Negra. Mas também tinha outras fontes. Desde o início da Reforma, os protestantes tiveram dificuldade em explicar a lacuna do século XV entre a instituição de Cristo de Sua Igreja e a fundação das igrejas protestantes. Os católicos naturalmente apontaram esse problema, acusando os protestantes de terem criado uma nova igreja separada da de Cristo. Os protestantes contra-argumentavam que a igreja deles era a criada por Cristo, mas que fora forçada a se esconder pela Igreja Católica. Portanto, assim como o Império Romano perseguiu os cristãos, também seu sucessor, a Igreja Católica Romana, continuou a persegui-los durante toda a Idade Média. Inconvenientemente, não havia protestantes na Idade Média, mas os autores protestantes os encontravam de qualquer maneira sob a forma de várias heresias medievais. (Afinal, eles eram subterrâneos). Sob essa luz, a Inquisição medieval nada mais era do que uma tentativa de esmagar a igreja oculta e verdadeira. A Inquisição Espanhola, ainda ativa e extremamente eficiente em manter os protestantes fora da Espanha, era para os escritores protestantes a última versão dessa perseguição. Misture-se liberalmente com a Lenda Negra e você terá tudo o que precisa para produzir folhetos sobre a horrível e cruel Inquisição Espanhola. E assim eles fizeram.
O povo espanhol amava sua inquisição. É por isso que durou tanto tempo. Ficava de guarda contra o erro e a heresia, protegendo a fé da Espanha e assegurando o favor de Deus. Mas o mundo estava mudando. Com o tempo, o império da Espanha desapareceu. Riqueza e poder mudaram para o norte, em particular para a França e a Inglaterra. No final do século 17, novas idéias de tolerância religiosa estavam borbulhando nos cafés e salões da Europa. As inquisições, católicas e protestantes, murcharam. Os espanhóis teimosamente seguraram a deles e, por isso, foram ridicularizados. Os filósofos franceses como Voltaire viam na Espanha um modelo da Idade Média: fraco, bárbaro, supersticioso. A Inquisição Espanhola, já estabelecida como uma ferramenta sanguinária de perseguição religiosa, foi ridicularizada pelos pensadores do Iluminismo como uma arma brutal de intolerância e ignorância. Uma nova e fictícia Inquisição espanhola foi construída, projetada pelos inimigos da Espanha e da Igreja Católica.
Por ser profissional e eficiente, a Inquisição Espanhola manteve registros muito bons. Grandes arquivos estão cheios deles. Esses documentos eram mantidos em segredo, de modo que não havia razão para os escribas fazerem nada além de registrar com exatidão todas as ações da Inquisição. Eles são uma mina de ouro para historiadores modernos que mergulharam avidamente neles. Até agora, os frutos dessa pesquisa tornaram uma coisa muito clara – o mito da Inquisição Espanhola não tem nada a ver com a coisa real.
Thomas F. Madden é professor associado e presidente do Departamento de História da Saint Louis University. Ele é o autor de numerosas obras, incluindo mais recentemente A Concise History ofthe Crusades (Rowman & Littlefield, 1999) e Enrico Dandolo and the Rise of Venice (Johns Hopkins University Press, 2003).
Reproduzido de:
https://apologistasdafecatolica.wordpress.com/2018/05/26/verdade-sobre-a-inquisicao-espanhola-thomas-f-madden/amp/