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quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

“NÃO ALÉM DO QUE ESTÁ ESCRITO” (1 COR 4,6): SOLA SCRIPTURA?




 “NÃO ALÉM DO QUE ESTÁ ESCRITO”
(1 COR 4,6)
SOLA SCRIPTURA?

A expressão contida em 1 Cor 4,6, em sua tradução mais comum para a língua portuguesa (“não ir além do que está escrito”), tem servido a alegações da proclamação bíblica Sola Scriptura, princípio fundamental do Protestantismo. Entretanto, o texto original seria traduzido literalmente como “o não acima do que escrito”, cuja ausência de verbos e outros complementos somente permite uma tradução mediante a especulação do seu real significado, a qual, para ser legítima, deve respeitar o respectivo contexto. A principal teoria é que se trata de um ditado comum na época, e mesmo exegetas protestantes que veem em “o que está escrito” uma referência à totalidade do Antigo Testamento têm reconhecido que esta teria o fim limitado pelo contexto, sendo uma lembrança da condição pecaminosa e limitada do homem. Pertinente ainda é a tese de que essa expressão, aparentemente sem sentido no contexto, seria uma glosa de copista que passou a ser inserida no texto. Em todo caso, a negação da tradição oral e da autoridade da Igreja, sendo a negação da própria pregação do apóstolo, e sendo contrária ao ensinado por São Paulo em outros textos, não pode abrigar-se aqui. E desse modo, não indo além do que está escrito, descabe a extrapolação que vê nesse trecho “Sola Scriptura!”.

A Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios repreende os habitantes de Corinto por estarem se dividindo em partidos em razão do orgulho por terem tido tal ou qual mestre (um diz eu sou de Paulo, outro eu sou de Apolo, outro eu sou de Kefas, 1 Cor 1,12). Encontra-se, no versículo 6 do capítulo 4 a expressão “aprendam de mim a não ir além do que está escrito”, que tem sido muito usada na tentativa de validar o Sola Scriptura (somente a Bíblia), princípio fundamental do Protestantismo.

O versículo, na versão Almeida Corrigida Fiel, tem a seguinte redação: “E eu, irmãos, apliquei estas coisas, por semelhança, a mim e a Apolo, por amor de vós; para que em nós aprendais a não ir além do que está escrito, não vos ensoberbecendo a favor de um contra outro” (sem destaque no original).

Na Nova Tradução na Linguagem de Hoje já encontramos: “aprendam o que quer dizer o ditado: ‘Obedeça ao que está escrito’”. Já na famosa King James Version, traduzindo literalmente, temos: “que aprendais em nós a não pensar dos homens acima do que está escrito”. A Tradução Ecumênica da Bíblia já tem a redação “... a nosso exemplo, aprendais a não vos inchar de orgulho, tomando o partido de um contra o outro”. A versão portuguesa “O Livro” já traz: “... tenho vindo a dizer: o que vocês pensam deve ser submetido ao que dizem as Escrituras”. A chamada Versão Fácil de Ler já escreve: “... aprendam isto: ‘Sigam somente o que as Escrituras dizem’”. Na Nova Bíblia Viva encontramos: “... lhes digo: que vocês não devem ter preferências pessoais”. E traduzindo literalmente a famosa Amplified Bible temos: “vocês aprendam [a pensar dos homens de acordo com a Escritura e] não ir além do que está escrito”.

Pode-se dizer que a parte antecedente (“E eu, irmãos, apliquei estas coisas, por semelhança, a mim e a Apolo, por amor de vós; para que em nós aprendais...”) e a consequente (“... não vos ensoberbecendo a favor de um contra outro”), guardadas as respectivas adaptações de concordância, mantêm-se constantes.

Entretanto, especificamente o trecho que diz “não ir além do que está escrito” aparece com grandes variações: desde o mais comum “não ir além” ou “não ultrapassar” o que está escrito, passando por “não pensar do homem acima” do que está escrito, pela afirmação de que se trata de um ditado que diz “obedeça ao que está escrito”, chegando a “o que vocês pensam deve ser submetido às Escrituras”, “sigam somente as Escrituras”, “vocês não devem ter preferências pessoais” ou “não devem se inchar de orgulho”.

Porque esse trecho tem tantas traduções tão variadas, umas dizendo não vá além do que está escrito, outras não pensar dos homens mais do que o que está escrito, outras simplesmente absorvendo essa pequena expressão na mensagem geral do versículo dizendo não se encham de orgulho, enquanto outras ainda dizendo andem conforme as Escrituras?

A resposta é que o texto grego antigo em que essas traduções são baseadas não possui verbo. Na verdade é um texto cuja tradução e compreensão tem desafiado estudiosos há séculos.

O texto grego, transliterado, é “tó mé hiper rá gegráptai”, que literalmente é “o não acima do que escrito”, ou “o não acima do que está escrito”, ou ainda “o não além do que está escrito”.

Ocorre que ao ser traduzido, para que esse texto tenha sentido, é preciso especular. Há um verbo implícito? Mas qual? Ir, pensar, considerar? Mas o que? Sobre o que? “O escrito” são as Escrituras? Mas por que não é citado nenhum trecho como nos outros locais da mesma carta onde aparece a expressão “está escrito”? Essa frase tão estranha seria um ditado conhecido na época? Mas o que significava?

Diferentes suposições (e são sempre e apenas suposições), levam a traduções e interpretações completamente diferentes.

Como, então, entender esse trecho? Parece que a razão está com Gordon D. Fee: “Seja o que for que signifique, o objetivo de tudo que precede, como o resto do argumento demonstra, é a proposição da cláusula final: que ‘vocês não se orgulhem de um contra o outro’” (The New International Commentary on the New Testament: The First Epistle t0 the Corinthians, Eerdmans, 1987, p. 166, original em inglês).

Portanto, seja um apelo aos princípios do Antigo Testamento, como a condição pecaminosa do homem, seja um ditado que tenha um significado como o conhecido “não procure pelo em ovo”, ou “chifre em cabeça de cavalo”, “não complique as coisas”, seja uma remissão ao que Paulo já escrevera nesta ou noutra carta, etc., seja o que for, esse trecho de apenas cinco palavras (“tó mé hiper rá gegráptai”) deve ser interpretado no contexto, e não numa extrapolação de sentido que contraria os objetivos do versículo e da Carta como um todo, para atender aos objetivos do intérprete.

Com essa visão parecem concordar a maioria, senão todos os exegetas protestantes de renome, como vemos a seguir.

No Comentário Bíblico NVI, editado por F. F. Bruce (Editora Vida, 2008), temos: “... Não ultrapassem o que está escrito. Para eles, é a necessidade de aprender o lugar subordinado do homem e da posição exaltada de Deus; a sabedoria humana sendo substituída pela de Deus, os líderes humanos, substituídos por Cristo. Essa é a cura para as facções – o orgulho inchado que iria ‘favorecer um e desprezar o outro’ (NEB) – e para o orgulho presunçoso deles, que confundia os dons de Deus com as suas próprias realizações” (Paul W. Marsh, 1 Coríntios, p. 1881).

Já Leon Morris escreve na reconhecida Série Cultura Bíblica (Editora Vida Nova): “Podemos muito bem conjeturar que não ultrapasseis o que está escrito(‘não além do que está escrito’) era um lema familiar a Paulo e a seus leitores, dirigindo a atenção para a necessidade de conformidade com a Escritura. Portanto, ele está dizendo que, considerando o que ele teve que dizer acerca de Apolo e de si próprio, eles aprenderão a ideia escriturística da subordinação do homem. Uniformemente a Bíblia exalta a Deus. A ênfase dada pelos coríntios às pessoas dos mestres significava que eles estavam tendo os homens em demasiado alta consideração” (I Coríntios: introdução e comentário, 1986, p. 62).

Hernandes Dias Lopes, no Comentário Hagnos: “Os coríntios julgaram Paulo, Apolo e Pedro por suas preferências e preconceitos. Entretanto, Paulo diz que não devemos julgar uns aos outros por esses critérios. (...) O que significa ultrapassar o que está escrito? Se você tem de examinar alguém, limite-se ao ensino das Escrituras. A única base de avaliação é a Palavra de Deus e não nossas opiniões. Não superestime os ministros além da medida das Escrituras” (I Coríntios: como resolver conflitos na igreja, 2008, pp. 76-77).

Simon J. Kistemaker, no Comentário do Novo Testamento (Editora Cultura Cristã), afirma que “A maioria dos estudiosos acredita que essas palavras ‘são evidentemente um provérbio, ou um princípio, em fórmula proverbial’. Pode ter sido um ditado corrente na arena política da época de Paulo e que servia para a promoção da unidade. Paulo, dizem esses especialistas, faz uso de uma máxima familiar nos círculos de Corinto para apelar para o fim das divisões na igreja e para promover a unidade” (2003, pp. 194-195).

Thomas Reginald Hoover, no Comentário Bíblico: 1 e 2 Coríntios (CPAD): “Não devemos ir além ‘daquilo que está escrito’, gloriando-nos em determinados pregadores ou mestres. Devemos ‘gloriar- nos no Senhor’ (Jr 9.23,24). Uma razão disso é que não sabem os motivos das outras pessoas. Escondemos os nossos motivos dos nossos semelhantes e, às vezes, nem percebemos a nossa própria motivação. Mas Deus tudo vê, e julgará até os motivos das nossas ações” (1999, p. 38).

Mesmo João Calvino, que sistematizou a doutrina protestante, entendeu apenas que “A frase ‘acima do que está escrito’, pode ser explicada de duas maneiras, ou seja: como uma referência ao que Paulo escreveu, ou às provas bíblicas a que fez referência. Visto, porém, que isso não é muito importante, os leitores estão livres para escolherem o que preferirem” (I Coríntios, Edições Parakletos, 2003, p. 135).

Poderíamos multiplicar as citações... Certo é que, no contexto, a expressão “o não acima do que está escrito”, não pode ser vista senão como algo que tenha um sentido compatível com “estou lhes ensinando a não se orgulharem em favor de um e contra outros, criando facções como se Cristo estivesse dividido”.

Donde razão assiste a traduções como da TEB e da Nova Bíblia Viva, que, ao invés de transferirem ao leitor comum da Bíblia o problema de entender o que essa enigmática expressão do texto original significa, apresenta o significado integral do versículo.

Lado outro, repreensível a tradução tendenciosa, como da Versão Fácil de Ler (VFL) elaborada pela Bible League International, que força o texto no sentido que mais favorece sua posição doutrinária, assumindo pressuposições que nem os exegetas protestantes (pelo menos a grande maioria) reconhece como legítimas.

Não podemos concluir esse estudo, enfim, sem mencionar algo de suma relevância sobre essa expressão (“o não acima do que está escrito). Desde o trabalho do teólogo protestante holandês Johannes Marinus Simon Baljon (De Tekst der Brieven van Paulus aan de Romeinen, de Corinthiërs en de Galatiërs als voorwerp van de conjecturaalkritiek beschouwd, Utrecht 1884, pp. 49–51) é grandemente apoiada a tese de que esse trecho é uma glosa, isto é, um acréscimo feito por um copista, que passou para as futuras cópias.

Assim, “o não acima do que [está] escrito” seria uma anotação de que o termo “não” (de “não vos ensoberbecendo”) estava inserido acima do texto corrente no original, algo que ocorre em textos escritos à mão. Nas cópias posteriores o que era apenas uma anotação marginal (glosa) foi sendo copiado no texto e lido como sua parte integrante. Para a chamada crítica textual, ciência que tem buscado chegar o mais próximo possível do texto primitivo da Bíblia mediante o estudo comparativo de manuscritos e a identificação de possíveis inserções e erros ocorridos ao longo de quase 1500 anos de cópias à mão, isso não é algo de se estranhar. É bom lembrar aqui que a Bíblia não caiu do céu impressa, encadernada, com zíper, índice, com todos os livros juntos e divididos em capítulos e versículos.

A nota de estudos na TEB, com efeito, registra: “O texto traz: o não acima do que está escrito. É difícil dar um sentido aceitável a esse texto. Uma hipótese engenhosa, adotada aqui, supõe tratar-se da nota marginal de um copista relativa a uma particularidade gráfica (o ‘não’ está escrito acima do ‘a’) e que um copista pouco inteligente transladou para o texto. Outros pensam num provérbio...” A Bíblia de Jerusalém anota semelhante observação.

E no prestiagiado Comentário Bíblico São Jerônimo encontramos: “‘não ir além do que está escrito’: J. Strugnell demonstrou (CBQ36 [1974] 555-58) que to mé hyper ha gegraptai é o comentário marginal de um copista em cujo exemplar faltava um mé, ‘não’, que ele introduziu antes de heis” (Jerome Murphy-O ’Cornnor, O. P., Primeira Carta aos Coríntios, p. 462, em Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos, Academia Cristã, Paulus, 2011).

Erro de copista ou não, contudo, “não ir além do que está escrito”, não é uma proclamação do Sola Scriptura, e, de fato, não vem sendo apresentado como tal por estudiosos e tradutores da Bíblia dignos de nota. Essa é uma expressão que apenas quando traduzida com o acréscimo de certas palavras, e posta fora do contexto em que se encontra na Bíblia, parece proclamar o Sola Scriptura. A expressão pode ser uma referência a um ditado ou lema da época, ou, caso se refira à Bíblia, à condição pecaminosa do ser humano, mas em ambos os casos, como reforço à reprimenda ao orgulho dos coríntios, que é o real objeto do texto bíblico.

Ademais, tenha-se em conta que se São Paulo estivesse proclamando o Sola Scriptura, estaria ele negando seu próprio ensinamento oral, que ele manda guardar e transmitir de modo igualmente oral, assim como seu ensinamento sobre a autoridade, especialmente da Igreja.

Com efeito, Paulo não diria para rejeitar a Tradição, quando ensinou em 2 Tm 2,2 “E o que de mim, entre muitas testemunhas, ouviste, confia-o a homens fiéis, que sejam idôneos para também ensinarem os outros”, em 2 Tm 3,14 “Tu, porém, permanece naquilo que aprendeste, e de que foste inteirado, sabendo de quem o tens aprendido”, e em 2 Ts 2,15 “Então, irmãos, estai firmes e retende as tradições que vos foram ensinadas, seja por palavra, seja por epístola nossa”, entre outros trechos que enfatizam o valor dos ensinamentos do Apóstolo dados oralmente, assim como da transmissão oral desse ensinamento.

São Paulo, também não poderia estar negando a Autoridade da Igreja, quando proclama a origem divina da autoridade: “Toda a alma esteja sujeita às potestades superiores; porque não há potestade que não venha de Deus; e as potestades que há foram ordenadas por Deus. Por isso quem resiste à potestade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos a condenação” (Romanos 13,1-2); e a legitimidade desta para julgar: “Ousa algum de vós, tendo algum negócio contra outro, ir a juízo perante os injustos, e não perante os santos? (…) Não há, pois, entre vós sábios, nem mesmo um, que possa julgar entre seus irmãos?” (1 Coríntios 6,1-5). E se um gesto vale mais que mil palavras, então Atos 15, que narra o Concílio de Jerusalém provocado por Paulo em razão da divergência com os que impunham a circuncisão aos pagãos convertidos, é a maior confissão de fé que ele poderia fazer da Autoridade da Igreja, pois havendo divergência sobre a doutrina, não decidiu sozinho, mas levou a questão à Igreja.

Para São Paulo, o Espírito Santo é que constituiu os bispos para que apascentem a igreja de Deus, a qual Ele resgatou com seu próprio sangue (Atos 20,28), a Igreja é o corpo mesmo de Cristo, pois afirma que “Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo (...) Grande é este mistério; digo-o, porém, a respeito de Cristo e da igreja” (Efésios 5,23-32), e corpo é algo visível, palpável, concreto, organizado, e capaz de agir. Ele também ensina que a Igreja é a casa de Deus (ou seja, a família de Deus, como normalmente o termo casa é empregado na Bíblia), ela é “a coluna e firmeza da verdade” (1 Timóteo 3,15); e que a Igreja vem de um desígnio eterno, e dela procede a revelação de Deus a partir do Cristo (Efésios 3,9-11).

Em resumo Paulo não proclamaria Sola Scriptura, sorrateiramente, num texto que não tem qualquer correlação com esse tema, para negar, sem mais, seus próprios ensinamentos dados oralmente, e não poucos ensinamentos postos por escrito sobre a Tradição, a constituição, a natureza e a Autoridade da Igreja.

Assim, para não ir além do que está escrito em 1 Cor. 4, 6, não se deve fazer a extrapolação de que “o não acima do que escrito”, no meio de uma reprimenda do orgulho e partidarismo dos coríntios, esteja, na verdade, significando “Sola Scriptura!: somente deve ser crido o que se encontra escrito na Bíblia, rejeitem tudo que eu não tenha ensinado por escrito, a Tradição, transmitida por palavras e gestos, e a Autoridade da Igreja! Cada qual leia as Escrituras e faça sua própria interpretação, e julgue por si mesmo, pois nem o ensinamento nem a decisão de quem quer que seja, um bispo, um Concílio, Kefas, vale coisa alguma, somente a Escritura. Quanto aos que discordarem do seu entendimento da Escritura, como você é livre para interpretá-la, separe-se deles e crie sua própria igreja”. Essa é evidentemente a mensagem oposta à da 1ª Carta aos Coríntios.


Concluamos que sendo o Sola Scriptura algo que não se pode deduzir de “o não acima do que está escrito” no devido contexto, e sendo incompatível com a teologia paulina, não há qualquer possibilidade de que 1 Coríntios 4,6 o ensine. 

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