Cristo não nos deu um livro mas Seu Corpo que é a Igreja
Sola Scriptura, expressão latina que significa “somente a Bíblia”, designa o princípio protestante da Autoridade Única das Escrituras, é o princípio fundamental da Reforma Protestante, pois marca a oposição à Igreja Católica.
De fato, para a Igreja Católica Romana, Escritura, Tradição e Magistério são aspectos indissociáveis da transmissão da revelação divina, sem um dos quais esta se deforma.
Conforme ensina a Constituição Dogmática Dei Verbum (Concílio Vaticano II): “a sagrada Tradição, a sagrada Escritura e o magistério da Igreja, segundo o sapientíssimo desígnio de Deus, de tal maneira se unem e se associam que um sem os outros não se mantém, e todos juntos, cada um a seu modo, sob a ação do mesmo Espírito Santo, contribuem eficazmente para a salvação das almas”.
Neste documento o Concílio expressa o entendimento católico de que Nosso Senhor Jesus Cristo mandou aos Apóstolos que pregassem o Evangelho a todos e “Isto foi realizado com fidelidade, tanto pelos Apóstolos que, na sua pregação oral, exemplos e instituições, transmitiram aquilo que tinham recebido dos lábios, trato e obras de Cristo, e o que tinham aprendido por inspiração do Espírito Santo, como por aqueles Apóstolos e varões apostólicos que, sob a inspiração do mesmo Espírito Santo, escreveram a mensagem da salvação”. E “para que o Evangelho fosse perenemente conservado íntegro e vivo na Igreja, os Apóstolos deixaram os Bispos como seus sucessores, entregando lhes o seu próprio ofício de magistério”. Assim, “A sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só depósito sagrado da palavra de Deus, confiado à Igreja” enquanto “o encargo de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita ou contida na Tradição, foi confiado só ao magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo”. Magistério que “não está acima da palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido, enquanto, por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo...”.
Conforme o Catecismo da Igreja Católica “O Magistério da Igreja faz pleno uso da autoridade que recebeu de Cristo quando define dogmas, isto é, quando propõe, dum modo que obriga o povo cristão a uma adesão irrevogável de fé, verdades contidas na Revelação divina ou quando propõe, de modo definitivo, verdades que tenham com elas um nexo necessário”.
Em oposição a essa doutrina, o Protestantismo propõe Sola Scriptura.
Sola Scriptura é o princípio formal da “Reforma Protestante” pois “se posiciona no início de tudo e assim direciona e forma tudo que os cristãos afirmam” (James Montgomery Boice, “Reforma hoje: uma convocação feita pelos evangélicos confessionais”, Cultura Cristã, 1999, p. 7). Assim, “Sola scriptura é um dos princípios fundamentais da Reforma Protestante. Alguém poderia até dizer que outras grandes doutrinas da Reforma (tais como sola gratia e sola fide) são logicamente dependentes do sola scriptura” (Brian M. Schwertley, “Sola Scriptura e o Princípio Regulador do Culto”, Os Puritanos, 2001, p. 11).
O marco histórico dessa doutrina-princípio é tido como a resposta de Lutero na Dieta (audiência) Imperial de Worms (1521), em que ele teria dito “A não ser que seja convencido por testemunhos das Escrituras ou por argumento evidente (...) estou vencido pelas Escrituras por mim aduzidas e minha consciência está presa nas palavras de Deus - não posso nem quero retratar-me de nada”.
Dito resumidamente, Sola Scriptura significa que a Bíblia é a única fonte e regra de fé e de prática. Nos termos da recente “Confissão de Fé dos Evangélicos Católicos” (católico aqui no sentido de interdenominacional) as Escrituras são “a única regra e autoridade infalível e suficientemente clara para a fé, para o pensamento e para a vida cristãos (sola scriptura)”.
Segundo o já citado Brian M. Schwertley: “Todos os homens são proibidos de acrescentar ou subtrair algo das Sagradas Escrituras, seja pelas tradições humanas, ou pelas assim chamadas novas revelações do Espírito, ou pelos decretos de concílios e sínodos. A Bíblia é suficiente e perfeita e não necessita de quaisquer acréscimos humanos. Além do que, apenas aquilo que é ensinado na Escritura pode ser usado para tornar cativas as consciências dos homens” (idem, p. 13).
Resumindo, Sola Scriptura é a negação tanto da Tradição Apostólica quanto do Magistério, o ensinamento dado com Autoridade, exercidos e guardados pela Igreja Católica Apostólica Romana. “A Bíblia, toda a Bíblia, e nada mais que a Bíblia é a religião dos protestantes” (Charles Haddon Spurgeon, “The Eternal Name”).
Nos termos da Confissão de Fé Batista de Londres de 1689, que detalha essa visão protestante: “A Sagrada Escritura é a única regra suficiente, certa e infalível de conhecimento para a salvação, de fé e de obediência"; “Todo o conselho de Deus, concernente a todas as coisas necessárias para a sua própria glória, para a salvação do homem, a fé e a vida, está expressamente declarado ou necessariamente contido na Sagrada Escritura”; “as coisas que precisam ser conhecidas, cridas e obedecidas para a salvação estão claramente propostas e explicadas em uma passagem ou outra; e, pelo devido uso de meios comuns, não apenas os eruditos, mas também os indoutos, podem obter uma compreensão suficiente de tais coisas” “A regra infalível de interpretação das Escrituras é a própria Escritura”, o “juiz supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas devem ser resolvidas e todos os decretos e concílios, todas as opiniões de escritores antigos e doutrinas de homens devem ser examinadas, e os espíritos provados”.
Ora, nesses exatos termos, resta evidente que, necessariamente, por coerência, o próprio princípio-doutrina Sola Scriptura deve ser encontrado na Bíblia, especialmente no Novo Testamento. Se ele não for encontrado na Bíblia ele se destrói, pois se mostra algo proposto para ser crido que não pode ser provado biblicamente.
De fato, muitos são os que tentam apontar versículos bíblicos específicos para sustentar o Sola Scriptura com a Bíblia. Outros tantos intentam dizer que essa doutrina encontra-se implícita em tal ou qual aspecto da Bíblia. Mas quero mostrar que o Sola Scriptura é incompatível com a maneira como o Novo Testamento foi escrito e formado, que o insere dentro de uma Tradição que, embora nele tenha se condensado parcialmente, dando-lhe forma, necessariamente lhe ultrapassa.
No tempo da pregação pública de Nosso Senhor Jesus Cristo, o admirável Rabi, grande em palavras e obras, ensinava abertamente, nas praças, campos e aldeias (Mc 6,56), sinagogas (Mt 4,23) e no Templo (Jo 8,2). Seus discípulos, especialmente aqueles doze conhecidos como apóstolos, foram chamados a uma intensa convivência integral com Ele, em que aprendiam não apenas aquilo que Ele explicava às multidões, mas ainda mais, pois “tudo declarava em particular aos seus discípulos” (Mc 4,34). Foram três intensos anos de aprendizado. E, ao final, após ressuscitar dos mortos, Nosso Senhor Jesus Cristo os incumbiu de ir até os confins do mundo para pregar a Boa Nova e fazer seus discípulos em todas as nações (Mt 28,19).
Essa determinação, entretanto, somente veio a ser implementada depois do Pentecostes, quando os apóstolos receberam o Espírito Santo no Cenáculo, e pregaram à multidão de diversos povos e línguas reunida em Jerusalém (At 2).
Desse dia em diante, narra o livro dos Atos dos Apóstolos, eles se espalharam, foram aos mais diversos lugares daquele tempo. Destaque é dado a São Paulo, constituído apóstolo dos gentios pelo próprio Cristo, viajou incansavelmente e sem temor, apesar dos perigos, pelo Oriente Médio, Grécia, Macedônia e mesmo Roma. Sempre anunciando as Boas Novas de Jesus Cristo. E o livro dos Atos dos Apóstolos, escrito por seu companheiro, o médico São Lucas, narra em detalhe boa parte de sua vida.
Como sabemos, os Apóstolos, como Pedro, João, Mateus, Judas, Tiago, e seus discípulos, como Lucas e Marcos, escreveram os documentos preciosíssimos que foram reunidos e ganharam o nome de Novo Testamento (em comparação com os livros dos judeus que fizeram parte do Antigo Testamento), e ambos os conjuntos foram reunidos num todo que hoje conhecemos como Bíblia, palavra grega que significa livros, biblioteca. De fato, a importância desses livros é imensa, e os cristãos sempre os viram como sagrados, devido à sua origem e seu conteúdo, pois condensam parte do ensinamento dos Apóstolos. E esse é o ponto em questão aqui, parte desse ensinamento, não todo ele.
Primeiro, repare que, conforme os Evangelhos, Jesus pregou, oralmente e com seus gestos e sua vida, e mandou pregar. E nós vemos nos Atos dos Apóstolos a mesma atitude: os Apóstolos e discípulos pregando, oralmente (“disputava na sinagoga com os judeus e religiosos, e todos os dias na praça com os que se apresentavam”, At 17, 17) e mediante o exemplo de suas vidas (“vós mesmos sabeis como convém imitar-nos, pois que não nos houvemos desordenadamente entre vós”, 2 Ts 3, 7; e ainda “Sede meus imitadores, como também eu, de Cristo”, 1 Co 11, 1).
Repare também que em nenhum momento, quer nas narrativas dos Evangelhos, quer na narrativa dos Atos dos Apóstolos, menciona-se que Nosso Senhor Jesus Cristo, ou algum dos Apóstolos, ou seus discípulos, escrevia seus ensinamentos (algo como “tal apóstolo retirou-se voluntariamente a um lugar reservado, de onde escrevia seus ensinamentos e os enviava aos discípulos e igrejas etc.”). Isso não acontece porque eles, os Apóstolos e discípulos, nada tenham escrito, nem que seus escritos não fossem importantes.
Essa omissão, então, deve ser vista como decorrente de ser a escrita desses documentos uma atividade secundária para os próprios Apóstolos, em relação à pregação direta, pessoal e oral. Desse modo, dedicaram-se a escrever apenas em segundo plano, e por força das circunstâncias, quando a pregação pessoal e oral não era possível.
De fato, os Apóstolos pregaram como Jesus havia pregado, e não ficaram em escritórios escrevendo tratados, cartas e panfletos a serem levados aos lugares mais distantes. Eles cumpriram o mandamento de Nosso Senhor Jesus Cristo indo pregar a todas nações. E sabemos que eles e seus discípulos chegaram a lugares distantes como a Índia, a Rússia e até mesmo à China.
Vê-se que eles escreveram não para substituir a pregação oral e pessoal, mas por força das circunstâncias. Com efeito, embora um meio menos eficaz de transmitir ideias fidedignamente, dadas as simplificações necessárias à escrita e as distorções possíveis na interpretação do material escrito (qualquer pessoa que escreve sabe honestamente disso), a escrita é o único meio existente naquela época para transmitir algo a quem está longe, a quem não se pode ver pessoalmente para falar. Ademais, o texto pode ser copiado e replicado, e então pode ir a vários lugares ao mesmo tempo, e sobreviver ao próprio autor, o que uma pessoa não pode fazer. Por isso os Apóstolos e discípulos escreveram o que está no nosso NT, especialmente a pessoas e comunidades distantes e necessitadas de instrução, àqueles que não podiam visitar, quando o apóstolo encontrava-se encarcerado e impedido de pregar pessoalmente etc.
As Cartas (Epístolas) de São Paulo atestam isso muito claramente. Paulo escreve referindo-se a uma visita pretérita (1 Co 2,1, 2 Ts 2,5) ou ao desejo de visitar a comunidade ou pessoa destinatária (1 Co 16,5-9; 2 Co 12,14; Fl 2, 24, 1 Tm 3,14) e lamenta não poder falar pessoalmente (Rm 1, 13-15). Muitas de suas cartas são escritas da prisão (Ef 3,1, Fl 1,13, Cl 4,18, 2 Tm 2,9, Flm 1,10), quando o Apóstolo dos Gentios era, portanto, forçado a escrever ao invés de predicar oral e pessoalmente. Além disso, suas cartas são episódicas, tratam de assuntos atuais e urgentes da comunidade de que teve notícia, e que requerem orientação (1 Co 1,11.11,18, 1 Ts 3,6, 2 Ts 3,11, Gl 1,11). Elas não têm o aspecto de tratado ou de panfleto, de meios de ensinar para substituir sua pregação oral, amplamente narrada nos Atos dos Apóstolos, mas são apenas um meio de suprir sua inevitável ausência quando assuntos urgentes demandam seu posicionamento.
Mesmo nos Evangelhos encontramos traços dessa escrita episódica e secundária em relação à atividade pregadora oral e pessoal.
São Lucas incia o seu Evangelho com um endereçamento à maneira de uma carta a alguém que já conhecia a Boa Nova, expressamente referindo à finalidade de reforçar a sua fé (Lc 1,3-4). O Evangelho de São João foi, segundo a opinião praticamente unânime dos estudiosos, o último a ser escrito, é claramente o Evangelho da maturidade do Apóstolo, e em 20,31 o autor deixa transparecer sua intenção de reforçar a fé daquele que o ler; e, no versículo final, o Apóstolo adverte a limitação do que foi escrito. De fato, pela data provável de redação, João devia ser idoso, com mais de 80 anos, donde a pregação oral e pessoal a lugares distantes era inviável. Ademais, é sabido que esse grande apóstolo, escreveu o livro do Apocalipse exilado na ilha de Patmos.
Mesmo o Evangelho de Marcos, o mais breve e direto, que se acredita tenha sido o primeiro dos quatro a ser escrito (ainda assim, provavelmente após as primeiras cartas paulinas), seria, segundo o antigo testemunho de Papias (Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica III,39) e efetivamente parece, o resumo (memórias como diz Papias) da pregação de São Pedro Apóstolo, a real testemunha ocular dos acontecimentos narrados. Portanto, um documento escrito para que elementos importantes dessa pregação não se perdessem, mas certamente não uma transcrição de toda a pregação ou de todo o conhecimento de São Pedro.
O próprio encerramento dos Evangelhos de Marcos e de Mateus, destacando o comissionamento (“ide, pregai”, Mc 16,15), assim como a atividade missionária (“pregaram por todas as partes”, Mc 16,20), mostra-nos não apenas secundarem estes textos à pregação, como já referimos, mas a intenção do escrito de suportar essa atividade, inclusive “credenciando” o pregador como enviado de Jesus Cristo, enviado de Deus, que os enviou expressamente no final de sua missão na Terra.
Paralelamente, enquanto o NT nada menciona da escrita dos textos, muito menciona da pregação oral, e de como essa pregação foi sendo repassada por novos comissionados constituídos pelos Apóstolos. Pois além do “ide, pregai”, dos Evangelhos, vemos a constituição de homens de Deus para serem chefes e servos das igrejas locais (bispos, presbíteros, diáconos, como em At 14,23; 20,28; 21,8, Fl 1,1, Cl 1,7; 1 Tm 3; 4,14, Tito 1,5-9, 1 Pd 5,1, 3 Jo 1,1 e outros), e a ordem de transmitir a outros o que foi recebido (2 Tm 2,2).
Ademais, dada essa escrita episódica, por diversos autores, em diversos tempos e lugares, de diversos textos independentes, que circularam separados inicialmente, é impossível que qualquer desses textos determinasse aos fiéis cristãos que se ativessem somente à Palavra escrita.
Com efeito, no momento em que a maioria dos textos do NT era escrita, nada mais que o Antigo Testamento, ou apenas alguns poucos textos do Novo, estavam em circulação. De fato, toda referência à Escritura nos textos do NT refere-se aos textos do Antigo Testamento.
A própria formação do corpo do Novo Testamento, com a definição do seu conjunto (cânon) apenas viria depois, tendo sido motivo de amplo debate em todo o século IV, com o Concílio de Roma (382), o Sínodo de Hipona (393), o Concílio de Cartago (397) etc.
Assim, cabe insistir, é impossível que esses textos determinassem ao leitor ater-se ao que está escrito, em poucos, parciais, raros e indeterminados textos na época, ao invés do que era rica, oral e vivamente pregado pelos Apóstolos e seus sucessores.
Quando lemos na Bíblia, na segunda carta que São Paulo escreveu a Timóteo, que “Toda a Escritura é divinamente inspirada, e proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça” (2 Timóteo 3, 16), a Escritura aí referida abrange apenas o Antigo Testamento, que era o que já existia e que Timóteo conhecia. A mensagem do Evangelho era quase que exclusivamente oral, pois é na mesma carta que São Paulo diz a Timóteo “o que de mim, entre muitas testemunhas, ouviste, confia-o a homens fiéis, que sejam idôneos para também ensinarem os outros” (2 Timóteo 2, 2), a definição de Tradição Apostólica.
São Paulo, em sua pregação, sempre mostrava que a Escritura (o Antigo Testamento até então) aponta para Cristo. E aqui São Paulo ensina, acertadamente, que a Escritura (Antigo Testamento) é útil e importante, pois ela prepara o cristão para receber o Evangelho, o anúncio da Boa Nova da Salvação operada pelo Cristo Jesus, e, assim, o prepara para poder ensinar, convencer e mesmo corrigir a outros (2 Timóteo 3,17), que é, na essência, o que São Paulo pede a São Timóteo: “Que pregues a palavra, instes a tempo e fora de tempo, redarguas, repreendas, exortes, com toda a longanimidade e doutrina” (2 Timóteo 4,2). Portanto, trata-se aqui de instruir a São Timóteo de que o texto do Antigo Testamento deveria ser aprofundado e utilizado para difundir e defender o Evangelho proclamado, ainda mais que, nesse momento, Timóteo não pode contar com a presença de São Paulo, que já se encontra encarcerado. E São Paulo não está advertindo Timóteo de que nada mais a não ser a Escritura deve ser considerado, até porque os seus ensinamentos ainda não faziam parte da Escritura.
Quando lemos na Bíblia que nada deve ser acrescentado ou subtraído deste livro (Apocalipse 22,18-19), tal texto está se referindo ao próprio livro em que isso está escrito. Os livros da Bíblia não circulavam todos juntos como um só volume para que toda a Bíblia fosse referida como “este livro”.
Do mesmo modo, quando lemos na Bíblia que ninguém deve pregar um evangelho diferente (Gálatas 1,6-9), o texto não está se referindo aos quatro evangelhos canônicos que estavam longe de estar todos escritos (acredita-se que este seja um dos primeiros textos neotestamentários). O texto se opõe à má notícia trazida pelos judaizantes, ou legalistas, que procuravam impor aos gregos convertidos a Lei de Moisés como se fosse condição para a salvação em Cristo. A Lei de Moisés, que os judeus cumpriam, impunha vários sacrifícios e rituais, e São Paulo pregava que isso não era necessário, pois a salvação vem agora por Jesus Cristo, e não dos sacrifícios e rituais dos judeus (ver da mesma Carta aos Gálatas, os capítulos 3 a 5). De fato, essa má notícia é contrária à Boa Nova da Salvação pela Graça dada por Nosso Senhor, um verdadeiro retrocesso em relação à conquista da Salvação pelo sacrifício do Cristo.
Outros textos bíblicos e peculiaridades do NT, como a reiterada remissão ao Antigo Testamento por Nosso Senhor para se referir à sua missão (Lc 4,16-21), responder aos que o questionavam (Jo 5,39), e até mesmo ao tentador no deserto (Mt 4,1-11), a consulta dos bereianos ao AT para verificar se as coisas eram assim (At 17,11) etc., também não sustentam o Sola Scriptura.
Com efeito, o argumento baseado nesses textos funda-se principalmente no entendimento equivocado do que seja a questão do Sola Scriptura. A antítese do Sola Scriptura faz-se com a exclusão do “Sola”, não do “Scriptura”. Não se rejeita a Escritura, que continua inspirada, inerrante e normativa, em conjunto com a Tradição Apostólica e o Magistério da Igreja Católica; muito ao contrário, rejeita-se o seu isolamento, e consequentemente sua interpretação privada e livre, o que leva ao subjetivismo e à distorção, e, enfim, à desunião do Corpo de Cristo que é a Igreja.
Os textos em questão nos dizem que a Escritura, mais especificamente o Antigo Testamento, é normativo, e nele encontramos a revelação que o Cristo veio cumprir. A Escritura é Palavra de Deus, sempre foi e continua sendo. Por meio dela cabe ensinar, corrigir, responder, como Nosso Senhor fez. E nela se encontra a identidade de Jesus de Nazaré como o Cristo, o Messias.
Além disso, a Tradição Apostólica e a Igreja, com sua Autoridade que é empenhada no Magistério, vêm do Cristo, partem dele para os Apóstolos, e prosseguem com seus sucessores. Evidentemente Jesus não poderia citar o que ainda não existia.
Nem cabe dizer que em Mt 15, 6, Nosso Senhor Jesus Cristo proscreveu a Tradição. Primeiro porque a Tradição Apostólica ainda não existia. Segundo porque as tradições rabínicas existentes, de fonte e autoridade completamente diferentes da Tradição Apostólica, eram múltiplas e conflituosas (fariseus, saduceus, essênios e outros). Terceiro, porque o que Nosso Senhor repreende, conforme se constata de uma leitura atenta do texto em seu contexto (versículos 1 a 20), não é nem mesmo a existência de tradições, mas o abuso delas para, sem cumprir o que Deus determina, fazer dela meio de alcançar fins egoístas; numa palavra: Jesus repreende a hipocrisia.
Mesmo o trecho da Bíblia que diz “aprendais a não ir além do que está escrito” (1 Co 4,6) não se presta a sustentar o Sola Scriptura. O fato é esse trecho pois mais parece um acréscimo, uma nota marginal que um copista incluiu no texto, conforme a Bíblia de Jerusalém observa. Por outro lado, supondo ser realmente parte do texto original, tudo indica que a expressão “o que está escrito” não se referiria à Escritura, pois Paulo sempre cita um trecho da Escritura quando a ela se refere pela expressão “está escrito”, como, na mesma carta em 1,19; 1,31; 2,9; 3,19; 9,9; 10,7; 14,21; 15,45; 15,54.
Em todo caso, pelo contexto, não está em discussão aqui uma questão de fontes do conhecimento da revelação, mas a divisão entre os cristãos de Corinto, que procuravam, na fama de seus mestres, motivos para orgulho.
Com efeito, o versículo completo diz: “E eu, irmãos, apliquei estas coisas, por semelhança, a mim e a Apolo, por amor de vós; para que em nós aprendais a não ir além do que está escrito, não vos ensoberbecendo a favor de um contra outro”. Assim, supondo tratar-se de texto original que realmente faz remissão à Bíblia, Paulo “está dizendo que, considerando o que ele teve que dizer acerca de Apolo e de si próprio, eles [os coríntios] aprenderão a ideia escriturística da subordinação do homem. Uniformemente a Bíblia exalta a Deus. A ênfase dada pelos coríntios às pessoas dos mestres significava que eles estavam tendo os homens em demasiado alta consideração” (Leon Morris, “I Coríntios: introdução e comentário”, Série Cultura Bíblica, Editora Vida Nova).
Ademais, se Paulo dissesse aqui para ater-se ao que está escrito no AT (a Bíblia então existente), toda a sua pregação deveria ser desconsiderada. Além do que, se dissesse para rejeitar a Tradição, estaria isso em conflito com o que ele ensinou em 2 Tm 2,2.
Cabe destacar que se trata, reconhecidamente, de um dos textos mais enigmáticos do Novo Testamento, e, por isso mesmo, sozinho, não pode sustentar o Sola Scriptura, pois este apregoa que “as coisas que precisam ser conhecidas, cridas e obedecidas para a salvação estão claramente propostas e explicadas em uma passagem ou outra” (Confissão de Fé Batista de Londres de 1689). Então, se o Sola Scriptura deve ser crido, deveria estar enunciado claramente em algum outro lugar da Escritura, e não obscuramente num texto completamente alheio a essa questão.
Desse modo, com esses exemplos, logo que se vê que os “versículos de prova” do Sola Scriptura bem examinados e contextualizados, não o confirmam, antes exemplificam o que, lógica e historicamente foi afirmado, que a maneira como foi redigido e compilado o Novo Testamento impossibilita que este contenha o ensinamento da doutrina-princípio do Sola Scriptura.
Entretanto, se Nosso Senhor Jesus Cristo não nos deixou nada escrito, não deu ordens para que escrevessem seus ensinamentos, e se mesmo seus apóstolos, e ainda os discípulos deles, escreveram episodicamente esparsos textos de modo resumido e secundário (em relação à pregação), pois mais dedicados à pregação oral e pessoal ordenada que foi por Nosso Senhor Jesus Cristo, como pretendia o Senhor que a sua Palavra chegasse a todos os povos e línguas de todos os tempos?
Nosso Senhor não nos deu um livro, Ele nos deixou o seu Corpo que é a Igreja, e, diferentemente do Sola Scriptura, isso está claríssimo no Novo Testamento.
De fato, vemos que o Senhor institui a Igreja e lhe confere uma liderança, São Pedro, que se chamava Simão, e foi o único apóstolo a que Nosso Senhor Jesus Cristo mudou o nome (para Kefas, pedra): “Pois também eu te digo que tu és Pedro (Kefas), e sobre esta pedra (kefas) edificarei a minha igreja”; e sobre essa Igreja Ele assegura “as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mateus 16,18).
Nosso Senhor Jesus Cristo confere autoridade à sua Igreja: “E, se não as escutar, dize-o à igreja; e, se também não escutar a igreja, considera-o como um gentio e publicano. Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu” (Mateus 18,17-18)
Ele também assegurou que ela seria assistida pelo Espírito Santo: “Ainda tenho muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora. Mas, quando vier aquele Espírito de verdade, ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará o que há de vir” (João 16,12-13). E que a assistirá “até a consumação dos séculos” (Mateus 28,20)
Esta Igreja que possui bispos, representantes visíveis, e pela qual o Cristo deu seu sangue preciosíssimo: “Olhai, pois, por vós, e por todo o rebanho sobre que o Espírito Santo vos constituiu bispos, para apascentardes a igreja de Deus, que ele resgatou com seu próprio sangue” (Atos 20,28).
São Paulo atesta que a Igreja é o corpo, do qual o Cristo é a cabeça: “... Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo. … a igreja está sujeita a Cristo, (…) Vós, maridos, amai vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela, para a santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela palavra, para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e irrepreensível. (...) nunca ninguém odiou a sua própria carne; antes a alimenta e sustenta, como também o Senhor à igreja; porque somos membros do seu corpo, da sua carne, e dos seus ossos. (...) Grande é este mistério; digo-o, porém, a respeito de Cristo e da igreja.” (Efésios 5,23-32).
De fato, São Paulo afirma que a casa de Deus (ou seja, a família de Deus, como normalmente o termo casa é empregado na Bíblia) “é a igreja do Deus vivo, a coluna e firmeza da verdade”(1 Timóteo 3,15)
São Paulo também atesta que é pela Igreja que a Palavra de Deus será proclamada: “E demonstrar a todos qual seja a comunhão do mistério, que desde os séculos esteve oculto em Deus, que tudo criou por meio de Jesus Cristo; para que agora, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus seja conhecida dos principados e potestades nos céus, segundo o eterno propósito que fez em Cristo Jesus nosso Senhor” (Efésios 3,9-11)
O Apóstolo assevera o compromisso de todo cristão com a Igreja, repelindo o individualismo da salvação pessoal tão apregoado hoje em dia a ponto de crescer rapidamente o movimento dos desigrejados: “Assim também vós, como desejais dons espirituais, procurai abundar neles, para edificação da igreja” (1 Coríntios 14,12).
Assim, enquanto nada se fala de escrever (algo como “escrevam meus ensinamentos e o enviem até os confins do mundo”), enquanto nenhum único trecho da Bíblia pode suportar a doutrina da exclusividade da Palavra escrita, a Bíblia, textualmente, ordena a pregação (pessoal e oral como a de Nosso Senhor Jesus Cristo), ordena a transmissão mediante a tradição oral (“E o que de mim, entre muitas testemunhas, ouviste, confia-o a homens fiéis, que sejam idôneos para também ensinarem os outros”, 2 Timóteo 2,2), e para isso mostra que Nosso Senhor Jesus Cristo instituiu a Igreja, com liderança, com autoridade, corpo de Cristo que é sua cabeça, a qual dá firmeza e coerência atestando a verdade, corporação visível de homens constituídos (bispos, presbíteros, diáconos) a serviço do povo fiel em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo que a constituiu, e com a edificação da qual todo cristão deve se comprometer.
Lembremo-nos da Palavra “Quem vos ouve a vós, a mim me ouve; e quem vos rejeita a vós, a mim me rejeita; e quem a mim me rejeita, rejeita aquele que me enviou” (Lucas 10,16). Quem é o enviado senão a Igreja que é o corpo visível de Cristo, família de Deus, certeza da verdade?
Por outro lado, também nos disse o Mestre: “Quem não é comigo é contra mim; e quem comigo não ajunta, espalha” (Mateus 12,30). Os irmãos protestantes que me perdoem, mas desde que surgiu o Protestantismo ele apenas tem espalhado os cristãos em um número cada vez mais numeroso de seitas conflitantes.
E, conforme a Escritura, “se um reino se dividir contra si mesmo, tal reino não pode subsistir” (Marcos 3,24). Embora o Protestantismo como um todo seja hoje algo que, humanamente falando, é impossível erradicar, cada ramo protestante vai se dividindo em facções cada vez menores, e se enfraquecendo cada vez mais, e assim enfraquecendo o próprio Cristianismo, dando espaço ao relativismo e ao mundanismo. Que é a Igreja Luterana hoje, diante de tantas seitas protestantes surgidas depois de Lutero? Onde está a Igreja Calvinista fundada em Genebra? Quantas sub igrejas existem sob o título de Batista, Presbiteriana etc? Quantas denominações neopentecostais? Definitivamente, no Protestantismo não há “Um só Senhor, uma só fé, um só batismo” (Efésios 4,5), não há uma doutrina, não há uma norma de conduta, mas contradições e mais contradições.
Até mesmo Lutero, ainda em sua época chegou a dizer “Este não escuta sobre o Batismo, aquele nega os sacramentos e aquele outro coloca um mundo entre este e o último dia; alguns ensinam que Cristo não é Deus, alguns dizem isto e alguns dizem aquilo; há tantas seitas e credos quanto o número de cabeças. Ninguém é tão rude que, tendo sonhos e fantasias, não possa pensar que foi inspirado pelo Espírito Santo, devendo ser um profeta” (De Wette 3,61; citado em O'Hare, “Facts about Luther”, p. 208).
Por outro lado, também estão nas Escrituras as palavras de Gamaliel: “E agora digo-vos: Dai de mão a estes homens, e deixai-os, porque, se este conselho ou esta obra é de homens, se desfará, mas, se é de Deus, não podereis desfazê-la; para que não aconteça serdes também achados combatendo contra Deus” (Atos 5, 38-39). E, assim, enquanto o Protestantismo que nasceu com o discurso de um retorno à verdadeira fé cristã, baseado na Bíblia, se divide e se esfacela em milhares de seitas antagônicas, a única Igreja Católica Apostólica Romana, prossegue, sempre combativa e sempre muito combatida por todas as forças deste mundo, mas segue em frente, e continua fazendo jus a seu título de Católica, ou seja, universal, pois além de congregar a grande maioria dos cristãos, é a única que se estende de um lado ao outro do mundo, e permanece a referência do que é o Cristianismo, de tal modo que todas as outras igrejas se classificam perante ela (protestantes, ortodoxas separadas, cismáticas, independentes etc.).
Enfim, o Novo Testamento em particular, e a Bíblia de uma maneira geral, são importantíssimos, preciosíssimos livros sagrados que sustentam e reforçam a nossa fé, devem ser lidos, estudados, apreciados, devem fazer parte de nosso cotidiano. Mas se inserem num contexto mais amplo, da Tradição Apostólica, isto é, do ensinamento que se transmitiu de boca em boca, do Mestre aos Apóstolos, dos Apóstolos aos discípulos, desses para os próximos, até hoje. Noutras palavras, Tradição transmitida na vida da Igreja. A Bíblia é parte dessa Tradição, mas, por definição, dada pelo contexto de sua redação e história, não a esgota.
Pela Bíblia somos instruídos na vontade de Deus, mas na Igreja e com a Igreja, à qual a Bíblia pertence, e a quem pertence a autoridade de corpo e enviado do Cristo. Nosso Senhor Jesus Cristo não nos deu um livro, deu-nos Seu Corpo, Sua Igreja.
* Obs.: Citações bíblicas da versão Almeida Revista e Corrigida ou da versão Almeida Corrigida Fiel, unicamente para evitar qualquer acusação de usar traduções católicas, supostamente “tendenciosas”.
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