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terça-feira, 16 de janeiro de 2018

A LÓGICA CONTRA O SOLA SCRIPTURA


Para a Igreja Católica Romana, Escritura, Tradição e Magistério são aspectos indissociáveis da transmissão da revelação divina, sem um dos quais esta se deforma. Conforme ensina a Constituição Dogmática Dei Verbum (Concílio Vaticano II): “a sagrada Tradição, a sagrada Escritura e o magistério da Igreja, segundo o sapientíssimo desígnio de Deus, de tal maneira se unem e se associam que um sem os outros não se mantém, e todos juntos, cada um a seu modo, sob a ação do mesmo Espírito Santo, contribuem eficazmente para a salvação das almas”.

Em oposição a essa doutrina, o Protestantismo propõe Sola Scriptura, expressão em latim que significa somente a Bíblia: “A Bíblia, toda a Bíblia, e nada mais que a Bíblia é a religião dos protestantes” (Charles Haddon Spurgeon, “The Eternal Name”).

Este é o princípio formal da “Reforma Protestante” pois “se posiciona no início de tudo e assim direciona e forma tudo que os cristãos afirmam” (James Montgomery Boice, “Reforma hoje”, Cultura Cristã, 1999, p. 7). “Sola scriptura é um dos princípios fundamentais da Reforma Protestante. Alguém poderia até dizer que outras grandes doutrinas da Reforma (tais como sola gratia e sola fide) são logicamente dependentes do sola scriptura” (Brian M. Schwertley, “Sola Scriptura e o princípio regulador do culto”, Os Puritanos, 2001, p. 11).

Essa dependência do Protestantismo para com o Sola Scriptura é tal que John F. MacArthur Jr. admite que “Evidentemente, se Roma pode provar sua posição contra sola Scriptura, ela aniquila todos os argumentos da Reforma com um golpe fatal” (“A suficiência da palavra escrita”, em “Sola Scriptura numa época sem fundamentos, o resgate do alicerce bíblico”, Cultura Cristã, 2000, pp. 135-136).

Entretanto, conforme se verá, esse princípio não se sustenta.

O Cânon Bíblico não é bíblico

Conforme declaram os protestantes “Todo o conselho de Deus, concernente a todas as coisas necessárias para a sua própria glória, para a salvação do homem, a fé e a vida, está expressamente declarado ou necessariamente contido na Sagrada Escritura”; e “as coisas que precisam ser conhecidas, cridas e obedecidas para a salvação estão claramente propostas e explicadas em uma passagem ou outra; e, pelo devido uso de meios comuns, não apenas os eruditos, mas também os indoutos, podem obter uma compreensão suficiente de tais coisas” (Confissão de Fé Batista de Londres de 1689).

Nesses exatos termos, resta evidente que, necessariamente, por coerência, o próprio princípio-doutrina Sola Scriptura deve ser encontrado na Bíblia, especialmente no Novo Testamento. Se ele não for encontrado na Bíblia ele se destrói, pois se mostra algo proposto para ser crido que não pode ser provado biblicamente.

É exatamente esse o problema, o Sola Scriptura não se encontra na Bíblia e com ela é incompatível, e isso pode ser demostrado logicamente.

Bíblia é uma palavra grega que significa literalmente “livros”. A Bíblia tem esse nome exatamente por ser um conjunto de livros, textos que foram escritos e circulavam independentemente uns dos outros, até que foram reunidos em um conjunto fixo e determinado que passou a ser conhecido com esse nome.

O fato é que nenhum livro da Bíblia afirma quais são os livros bíblicos. Em outros termos, a Bíblia não tem um índice que seja ele mesmo bíblico. Esse conjunto foi determinado pela Igreja a partir da Tradição, no século IV, como resultado de concílios regionais e com a tradução da Bíblia para o latim (a Vulgata).

Ora, somente conhecido o conjunto é possível determinar os elementos que lhe são excluídos. Assim, é impossível que qualquer texto bíblico, escrito como um livro independente, cujo conjunto futuramente seria determinado e o incluiria, dissesse quais são os livros do conjunto e consequentemente quais são os ensinamentos daquele conjunto, e que outros livros e ensinamentos estariam excluídos. Em outras palavras, é impossível que quaquer dos textos bíblicos determinasse que somente o que neles se contêm fosse considerado como regra de fé e moral, pois se não é conhecido o conjunto, não é possível determinar o que dele está excluído.

Impossibilidade de prova da negação

A afirmação do Sola Scriptura, de que somente o que se encontra na Escritura é a verdade revelada, é necessariamente a negação de que exista verdade revelada em qualquer outro lugar, tal como na Tradição.

Ocorre que, por uma questão de lógica, é impossível fazer prova negativa, isto é, provar uma negação. Por exemplo, por mais que seja pouquíssimo comum, é impossível alguém provar que nunca foi à Lua. É possível provar que uma pessoa não estava na Lua ontem, pela comprovação de um fato que implique estar ela na Terra, mas não é possível provar que ela nunca esteve lá.

Com efeito, tudo que se pode provar são fatos, não negações. Eventualmente um fato provado implica a impossibilidade de outro fato, mas isso somente ocorre se o fato provado for incompatível com o outro que foi negado. É o caso do álibe: como uma pessoa não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, se alguém prova estar num lugar diferente no momento de um crime, não pode tê-lo cometido.

Então, para que se prove que não há ensinameto de Nosso Senhor Jesus Cristo, portanto verdade revelada, e ensinamento apostólico, fora da Bíblia, seria necessário provar um fato incompatível com a existência de verdade revelada fora da Bíblia. Mas quais fatos teriam essa implicação? Talvez que Nosso Senhor tivesse se revelado somente por escrito, que ninguém O viu nem O ouviu, mas que dEle apenas recebeu um livro (e algumas religiões e seitas realmente alegam ter revelações assim); ou que os apóstolos somente pregaram por escrito; ou que não foram constituídos bispos e sucessores na pregação apostólica. Ora, como tais afirmações são sabidamente falsas e negadas pela própria Escritura, não é possível tal prova.

Isso torna, logicamente insustentável a fundamentação do Sola Scriptura, que figura então como pressuposto admitido pelo Protestantismo sem fundamentação na Escritura, algo que o próprio Sola Scriptura condena, pois exige que tudo se prove pela Escritura. A contradição é evidente.

Petitio principii

Santo Agostinho de Hipona escreveu: “Eu não creria no Evangelho, se a isso não me levasse a autoridade da Igreja católica” (Contra a epístola fundamental dos Maniqueus, cap. 5, par. 6). Obviamente isso é incompatível com o Sola Scriptura, pois se a Bíblia precisa do testemunho da Igreja para ser crida, então não é possível negar a Autoridade da Igreja. Por isso o Protestantismo propõe a Autoautencidade da Bíblia, na intenção de dizer que o testemunho da Igreja é dispensável, a Bíblia se sustenta sozinha e deve ser ser crida por si mesma.

Autoautencidade da Bíblia significa dizer que a Bíblia é Palavra de Deus porque diz que é. Conforme autores protestantes: “... não pode ser racionalmente negado que a Bíblia reivindica ser a Palavra de Deus inerrante e infalíveI (2Tm 3.16,17; 2Pe 1.20,21). E isso é significativo. É uma reivindicação que poucos escritos fazem. Portanto, visto que a Bíblia faz tal reivindicação, explícita e predominantemente, é razoável crer no testemunho da própria Bíblia”; e sobre a necessidade da autoautenticidade para o Sola Scriptura: “Se alguém pudesse provar que a Bíblia é a Palavra de Deus, a Bíblia não seria o ponto de partida. Haveria algo antes do ponto de partida, o qual seria então o verdadeiro ponto de partida. Simplesmente declaro, de acordo com a Escritura, que não há maior autoridade do que a Palavra autoautenticadora de Deus” (Richard Bacon e W. Gary Crampton, “Em Direção a uma Cosmovisão Cristã”, Monergismo, 2009, pp. 47-48).

Assim, documentos e autores protestantes afirmam solenemente a Autoautenticidade da Bíblia e a dispensa da Igreja. Conforme a Confissão de Fé de Westminster (seguida pela Confissão de Fé Batista de Londres de 1689): “A autoridade da Escritura Sagrada, razão pela qual deve ser crida e obedecida, não depende do testemunho de qualquer homem ou igreja, mas depende somente de Deus (a mesma verdade) que é o seu autor; tem, portanto, de ser recebida, porque é a palavra de Deus”. Já Schwertley escreveu: “A igreja (sejam ou não papas, cardeais, bispos, pais da igreja, concílios eclesiásticos, sínodos ou congregações) não tem autoridade sobre a Bíblia, mas a Escritura auto-autenticada tem autoridade absoluta sobre a igreja e sobre todos os homens. Por ser o que a Bíblia é (como já visto), o mister da igreja é puramente ministerial e proclamador.” (“Sola Scriptura e o Princípio Regulador do Culto”, Cultura Cristã, 1999, p. 13).

O problema é que vários outros textos reclamam sim serem palavra de Deus. Basta lembrar do Alcorão, ou do Livro de Mórmon. Dizem os mórmons que “O Livro de Mórmon é a palavra de Deus, assim como a Bíblia”, e dele extraímos, por exemplo, o seguinte “E se acreditardes em Cristo, acreditareis nestas palavras, porque são as palavras de Cristo (…)” (2 Néfi 33,10). E quantos evangelhos apócrifos, que não entraram na composição da Bíblia existem? Há dezenas deles. Sem falar dos “atos”, “apocalipses”, e apócrifos do Antigo Testamento.

A autoautenticidade da Bíblia, e por consequencia o Sola Scriptura, simplesmente não têm uma resposta para o porque desses textos não serem considerados críveis. E isso ocorre porque a autoautenticidade é uma petição de princípio (petitio principii), ou falácia de circularidade, um argumento que pressupõe como verdade algo que se quer provar. Crê-se que a Bíblia é Palavra de Deus, e, assim, é verdadeira, e, então, por ela dizer ser Palavra de Deus, crê-se que ela é Palavra de Deus e verdadeira. Ora, se alguém não crê que a Bíblia é Palavra de Deus, e não necessariamente verdadeira, a alegação bíblica de ter essa qualidade de nada vale para chegar a essa convicção. E, se alguém aplicar tal raciocínio circular ao Alcorão, ao Livro de Mórmon, aos Evangelhos Apócrifos, ou a qualquer outro texto sagrado, concluirá necessariamente serem estes Palavra de Deus.

Registro que para tentar escapar dessa circularidade Calvino apelou para a iluminação pessoal do Espírito Santo: “Portanto, que se tome isto por estabelecido: aqueles a quem o Espírito Santo interiormente ensinou aquiescem firmemente à Escritura, e esta é indubitavelmente autopiston [autopiston – autenticada por si mesma]; nem é justo que ela se sujeite a demonstração e arrazoados, porquanto a certeza que ela merece de nossa parte a obtemos do testemunho do Espírito. Pois, ainda que, de sua própria majestade, evoque espontaneamente reverência para si, todavia por fim nos afeta seriamente, visto que nos foi selada no coração através do Espírito. Portanto, iluminados por seu poder, já não cremos que a Escritura procede de Deus por nosso próprio juízo, ou pelo juízo de outros; ao contrário, com a máxima certeza, não menos se contemplássemos nela a majestade do próprio Deus, concluímos, acima do juízo humano, que ela nos emanou diretamente da boca de Deus, através do ministério humano” (João Calvino, “As Institutas”, vol. 1, Cultura Cristã, 2003, pp. 85-86).

É óbvio que tal emenda leva a um total subjetivismo, que igualmente permite a outras pessoas dizerem ser outros livros igualmente Palavra de Deus alegando, e acreditando, que estão sendo iluminadas...

Na verdade Calvino percebeu o problema e estabeleceu que se deve julgar o Espírito pela Escritura: “E então? Uma vez que Satanás se transfigura em anjo de luz [2Co 11.14], que autoridade terá o Espírito entre nós, a não ser que seja discernido através de sinal de absoluta certeza? (...) Alegam, com efeito, que é afrontoso que o Espírito de Deus, a quem todas as coisas devem estar sujeitas, seja subordinado à Escritura. (...) Com efeito, confesso que, desta forma, o Espírito é submetido a um exame, contudo um exame através do qual ele quis que sua majestade fosse estabelecida entre nós. (...) Entretanto, para que o espírito de Satanás não se insinue sob o nome do Espírito, ele quer ser por nós reconhecido em sua imagem que imprimiu nas Escrituras. Ele é o autor das Escrituras: não pode padecer variação e inconsistência para consigo mesmo. Portanto, como ali uma vez se manifestou, assim tem ele de permanecer para sempre” (Idem, pp. 100-101).

Em outras Palavras, segundo Calvino, o Espírito Santo, num testemunho interno, é que deve fazer o fiel crer nas Escrituras, cuja inspiração é atestada se estiver conforme as Escrituras, pois, caso, contrário, essa inspiração vem do Maligno. Isso é apenas uma maneira sofisticada de dizer absolutamente a mesma coisa que o que foi comentado acima: crer que a Bíblia é Palavra de Deus, e, em razão do que está nela escrito (que ela é Palavra de Deus), crer nisso.


Portanto, irremediavelmente, dependente como é da Autoautenticação da Bíblia, o Sola Scriptura encontra-se fundado numa terrível falácia de circularidade.

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