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segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Breve ensaio sobre a Tradição Apostólica e a Igreja Católica



Certa vez fui passar a Páscoa com uma família de amigos. Resolvi então comprar um enorme ovo de páscoa, pois era uma família grande, e a matriarca da família, uma senhora idosa, avó dos meus amigos, poderia repartir o ovo com todos. Isso é o que a minha mãe fazia todos os anos: repartia os ovos de páscoa e os bombons entre todos os filhos, netos, etc. que estivessem na nossa casa para o almoço de Páscoa. Chegou o dia, e eu entreguei aquele enorme ovo de chocolate àquela senhora. E ela agradeceu, levantou-se, e guardou o ovo… Foi então que eu tive consciência de que a minha família tinha uma tradição, que é nossa, não é o costume de todos.

Hoje eu entendo que tradição é algo que se recebe, que se segue, que se tem, mas muitas vezes não se tem consciência de que se tem, qual seu significado e importância, até que surja uma situação em que essa tradição é posta em relevo ao confrontar-se com uma situação de negação.

Do mesmo modo é a Tradição Apostólica, o ensinamento recebido dos apóstolos em palavras, atos, ritos, atitudes, transmitido de geração em geração pelos cristãos de todos os tempos e lugares, que também lhe dão expressões próprias e variadas (as tradições, com “t” minúsculo e no plural). Nós tomamos consciência de aspectos dessa Tradição especialmente quando ela é questionada, negada, posta em dúvida ou criticada. Donde os concílios ecumênicos, as declarações de dogmas, e porque essas muitas vezes ocorrem séculos e séculos depois que os apóstolos já morreram.

Com efeito, a Tradição é como um rio que move as pás de um moinho onde se tritura o milho. Em cada saco de fubá está a energia do rio, mas o rio mesmo só é visto se procurado, pois passa debaixo do moinho de onde veio o fubá. Do mesmo modo, a Tradição é algo subjacente a tudo da fé cristã, da vida da Igreja, ela está nos ensinamentos, nos ritos, costumes, devoções, etc. Tudo que o legítimo povo de Deus crê e faz contém algo da Tradição. Noutras palavras, como o rio para o fubá, nas tradições está a Tradição Apostólica, a Grande Tradição, que movimenta a Igreja e faz nascer seus frutos de amor e piedade. Estes frutos não são a Tradição, mas surgem dela, dela recebem sua força propulsora que lhes dá vida e sustentação. E tal como o rio, a Tradição pode ser encontrada por quem a procure, basta seguir a fonte de seus frutos.

Nessa linha, nunca se pode dizer que os ensinamentos da Igreja Católica, os dogmas cristãos, são esses que já foram declarados e somente esses. Nós não sabemos que questões a Igreja ainda enfrentará, e que verdades, embora antigas, precisarão ser declaradas dogmaticamente a fim de afastar o erro.

Fato é que Nosso Senhor Jesus Cristo apenas pregou oralmente e deu a seus Apóstolos a ordem de pregar, não de escrever. Por isso, tão logo ele subiu aos céus, os apóstolos acorreram a todos os cantos do mundo pregando. Quantas viagens Paulo não fez? Então a Tradição precede a Escritura, isso é verdadeiro tanto para o Antigo quanto para o Novo Testamento (sendo particularmente evidente para o Novo Testamento, que documenta as viagens de Paulo).

E como qualquer escrito, o Novo Testamento não contém toda a Tradição. Tal como uma pessoa que escreve sua autobiografia obviamente não consegue contar todos os detalhes da sua vida, mas se fixa em alguns pontos que naquele momento (em que está escrevendo) acredita serem os mais relevantes, a Escritura não tem todos os detalhes. É impossível assegurar que tudo, toda a pregação dos Apóstolos, e tudo que é relevante da Revelação para todos os tempos, esteja escrito no Novo Testamento. Exatamente o contrário é muito mais plausível.

Mesmo o fechamento do cânon bíblico, a rigor, é um corte um tanto artificial, feito para fins práticos, que atesta que aqueles escritos são inspirados, sendo de apóstolos ou discípulos imediatos dos apóstolos. Mas isso não significa que não haja algo além daqueles escritos que mereça fé, ou que a inspiração do Espírito Santo cessou, pois Ele sopra onde quer e quando quer. De fato, com o fechamento do cânon, não encontramos na Bíblia vários textos importantes para os cristãos, como a Carta de Clemente aos Coríntios, a Didaquê, o Pastor de Hermas, as Cartas de Inácio de Antioquia, etc. São textos que ensinam sem erro importantíssimas lições das primeiras eras do Cristianismo. Mas era preciso fechar as Escrituras para os cristãos em algum ponto, e isso foi feito. Entretanto, supor nisso uma ruptura na doutrina cristã, como se naquele momento acabasse a inspiração do Espírito Santo, e não corresse viva a Tradição vinda dos Apóstolos, é totalmente artificial e contrário à realidade.

Graças a Deus, além dessa Tradição se manter viva na Igreja Católica, muito dela está documentada, preservada nos testemunhos dos cristãos das gerações que nos precederam, onde encontramos provas históricas de nossas raízes.

Por outro lado, dizer que algo está na Escritura, algo está na Tradição, algo está no Magistério, , somente revela uma má compreensão desses elementos. Um único é o depósito da fé, como bem acentua a Dei Verbum, é a Revelação de Nosso Senhor Jesus Cristo que se fez homem, e cujo ensinamento, em gestos, palavras, obras, foi transmitido pelos apóstolos (palavra que significa enviado) e cuja continuidade é a Igreja, que já São Paulo ensinava, é o Corpo de Cristo, coluna e sustentação da Verdade.

Assim, sendo a Tradição a continuidade desse ensino do Cristo, na vida e doutrina da Igreja, sendo a Escritura a parcial condensação dessa Tradição em escritos da era apostólica, e sendo Magistério o exercício da Autoridade conferida por Nosso Senhor à Igreja, o depósito da fé é único, abrangendo e englobando esses três aspectos de modo indissociável, e pode-se dizer que é a Igreja mesma. Em outros termos, os três formam um só corpo, que é o depósito da fé, e que a seu turno é a continuidade do ensinamento do Cristo, cuja obra é continuada na Igreja, que é o seu corpo. Portanto, os três, Tradição, Escritura e Magistério, são o prolongamento do ensinamento e ação do Cristo mediante a Igreja, portanto, são a Igreja.

Entretanto, essa identificação do depósito da fé é algo essencialmente inadmissível pelos protestantes. Primeiro, porque o Protestantismo nasceu da rejeição da Igreja Católica. Segundo, porque é da natureza do Protestantismo que tudo seja questionável, a partir da rejeição da Autoridade e da Tradição em favor do Livre Exame da Bíblia, tornando-se cada qual o juiz da verdade segundo a própria interpretação da Escritura. Mas é um erro pretender separar a Escritura da Igreja, da Tradição e do Magistério. Escritura sem Tradição e Magistério é apenas um livro, mais um livro, com o qual se pode fazer de tudo, que admite qualquer interpretação, que está sujeito ao uso e ao abuso. Mas no contexto da Igreja, ela entra na grande corrente da Tradição, numa relação recíproca de compreensão e estabilização, e quando avultam disputas, a Igreja está presente para re-estabilizar esse grande caudal apaziguando o mar e os ventos com a Autoridade que Cristo lhe confiou exercendo o Magistério.

Portanto, a nossa fé vem dos apóstolos, pelo meio que os apóstolos deixaram, a Igreja pela qual Cristo deu seu sangue, como afirma São Paulo. Nada menos, nada mais. E embora possamos diferenciar conceitualmente os elementos da Tradição, da Escritura e do Magistério, eles de tal modo compõem o depósito da fé da Igreja que são em verdade um só e único, e se identificam com a Igreja mesma, Corpo de Cristo e prolongamento visível de sua ação no mundo, com seus ensinamentos, seus ritos, suas ações. E como tudo que é unido, quando separados, se enfraquecem e se desintegram.

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