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quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Deus nos livre de um Brasil evangélico (do site do "Pastor" Ricardo Gondim)




Ricardo Gondim*

Começo este texto com uns 15 anos de atraso. Eu explico. Nos tempos em que outdoors eram permitidos em São Paulo, alguém pagou uma fortuna para espalhar vários deles em avenidas da cidade com a mensagem: “São Paulo é do Senhor Jesus. Povo de Deus, declare isso”.

Rumino o recado desde então. Represei qualquer reação à bobagem estampada publicamente; hoje, por algum motivo, abriu-se uma fresta em uma comporta de minha alma. Preciso escrever sobre o meu pavor de ver o Brasil tornar-se evangélico. Antes explico: eu gostaria de ver o Brasil permeado com a elegância, solidariedade, inclusão e compaixão do Evangelho. Mas a mensagem subliminar dos outdoors, para quem conhece a cultura do movimento evangélico, é outra. Os evangélicos sonham com o dia em que cidade, estado e país se convertam em massa, e a terra dos tupiniquins tenha a cara de suas denominações.

Afirmo que o sonho é que haja um “avivamento” religioso que leve uma enxurrada de gente para os templos evangélicos. Não reside entre os teólogos do movimento qualquer desejo de que valores cristãos influenciem a cultura brasileira. Eles anelam tão somente que o subgrupo, descendente distante dos protestantes, prevaleça. A eles não interessa que haja um veloz crescimento numérico entre católicos romanos; que ortodoxos sírios, russos, armênios ou gregos se alastrem. Para “ser do Senhor Jesus”, o Brasil tem que virar “crente”, com a cara dos evangélicos. (acabo de bater três vezes na madeira).

Avanços numéricos de evangélicos em algumas áreas já dão uma boa ideia de como seria desastroso se acontecesse a tal levedação radical do Brasil.

Imagino uma Genebra calvinista brasileira e tremo. Sei de grupos que anseiam por um puritanismo não inglês, mas moreno. Caso acontecesse, como os novos puritanos tratariam Ney Matogrosso, Caetano Veloso, Maria Gadu? Respondo: seriam execrados como diabólicos, devassos e pervertedores dos bons costumes. Não gosto nem de pensar no destino de poesias sensuais como “Carinhoso” do Pixinguinha ou “Tatuagem” do Chico. Um Brasil evangélico empobreceria, já que sobrariam as péssimas poesias do cancioneiro gospel. As rádios tocariam sem parar músicas horrorosas como “Vou buscar o que é meu”, “Rompendo em Fé”.

Uma história minimamente parecida com a dos puritanos calvinistas provocaria, estou certo, um cerco aos boêmios. Novos Torquemadas seriam implacáveis e perderíamos todo o acervo do Vinicius de Moraes. Quem, entre puritanos, carimbaria a poesia de um ateu como Carlos Drummond de Andrade?

Como ficaria a Universidade em um Brasil dominado por evangélicos? Os chanceleres denominacionais cresceriam, como verdadeiros fiscais, para que se desqualificasse Charles Darwin como “alucinado inimigo da fé”. Facilmente se restabeleceria o criacionismo como disciplina obrigatória em faculdades de medicina, biologia, veterinária. Nietzsche jazeria na categoria dos hereges loucos. Derridá nunca teria uma tradução para o português. O que dizer de rebeldes como Mozart, Gauguin, Michelangelo, Picasso? No máximo, seriam pesquisados como desajustados. Ganhariam rótulos para serem desmerecidos a priori como loucos, pederastas, hereges.

Um Brasil evangélico não teria folclore. Acabaria o Bumba-meu-boi, o Frevo, o Vatapá. As churrascarias não seriam barulhentas. A alegria do futebol morreria; alguma lei proibiria ir ao estádio ou ligar televisão no domingo. E o racha, a famosa pelada de várzea, aconteceria quando? Haveria multa ou surra para palavrão?

Um Brasil evangélico significaria que o fisiologismo político prevaleceu. Basta uma espiada no histórico de Suas Excelências da bancada evangélica nas Câmaras, Assembleias e Gabinetes para se apavorar. Se, ainda minoria, a bancada evangélica na Câmara Federal é campeã em faltas e em processos no STF, imagina dominando o parlamento.

Um Brasil evangélico significaria o triunfo do “american way of life”, já que muito do que se entende por espiritualidade e moralidade não passa de cópia malfeita da cultura estadunidense. Obcecados em implementar os “valores da família”, tão caros ao partido republicano dos Estados Unidos, recrudesceria a teologia de causa-e-efeito, cármica, do “quem planta, colhe”. Vingaria o sucesso como aferidor da bênção de Deus.

Um Brasil evangélico acirraria o preconceito contra a Igreja Católica. Uma nova elite religiosa (os ungidos) destilaria maldição contra os “inimigos da fé”, os “idólatras”, os “hereges”, com mais perversidade do que aiatolás iranianos. Ficaria mais fácil falar de inferno e mandar para lá todo mundo que rejeitasse algumas lógicas tidas como ortodoxas.

Cada vez que um evangélico critica a Rede Globo eu me flagro perguntando: Como seria uma emissora liderada por evangélicos? Adianto: insípida, brega, chata, horrorosa, irritante.

Prefiro, sem pestanejar, os textos do Gabriel Garcia Márquez, do Mia Couto, do Victor Hugo, do Fernando Moraes, do João Ubaldo Ribeiro, do Jorge Amado, a qualquer livro da série “Deixados para Trás” do fundamentalista de direita, Tim LaHaye. O demagogo Max Lucado (que abençoou a decisão de Bush bombardear o Iraque) não calça o chinelo de Mário Benedetti.

Toda a teocracia um dia se tornará totalitária. Toda a tentativa de homogeneizar a cultura precisa se valer de obscurantismo. Todo o esforço de higienizar os costumes é moralista e hipócrita.

O projeto cristão visa preparar para a vida. Jesus jamais pretendeu anular os costumes de povos não-judeus. Daí ele celebrar a fé em um centurião, adorador no paganismo romano, como especial e digna de elogio. Cristo afirmou que, entre criteriosos fariseus, ninguém tinha uma espiritualidade tão única e bela como daquele soldado que se preocupou com o escravo.

Levar a Boa Notícia – Evangelho – não significa exportar cultura, criar dialeto ou forçar critérios morais. Na evangelização, fica implícito que todos podem continuar a costurar, compor, escrever, brincar, encenar, como sempre fizeram. O evangelho convoca à pratica da justiça; cria meios de solidariedade; procura gestar homens e mulheres distintos; imprime em pessoas o mesmo espírito que moveu Jesus a praticar o bem.

Há estudos sociológicos que apontam estagnação quando o movimento evangélico chegar a 35% da população brasileira. Esperemos que sim. Caso alcançasse a maioria, com os anseios totalitários e teocráticos que já demonstra, o movimento desenvolveria mecanismos para coibir a liberdade. Acontece que Deus não rivaliza a liberdade humana, mas é seu maior incentivador.

Portanto, Deus nos livre de um Brasil evangélico.


* Teólogo brasileiro, presidente nacional da Igreja Betesda, presidente do Instituto Cristão de Estudos Contemporâneos, conferencista. (Wikipédia)

Texto reproduzido de: http://www.ricardogondim.com.br/meditacoes/deus-nos-livre-de-um-brasil-evangelico/.

Nota: Quando dizem que o Brasil está para ser engolido pelos "evangélicos", não podemos deixar de divulgar a opinião de um pastor protestante que percebe que isso seria um retrocesso. Não necessariamente concordamos inteiramente com todos os pontos de vista expressos no texto.

DEUS VULT: como o estudo da fé católica me levou ao catolicismo (do site "O Fiel Católico")



PUBLICAMOS O BELÍSSIMO testemunho de conversão de João Marcos, leitor que veio graciosamente compartilhar conosco sua inspiradora história. Consideramos que o texto tenha em si grande valor, porque além de motivar tantas outras pessoas que vivem histórias semelhantes (e que nos contatam quase diariamente), contém uma boa lista de indicações bibliográficas e de webpagesque lhe foram de auxílio, – e que certamente poderão auxiliar também a muitos outros de nossos leitores. Segue...

Não existem cem pessoas que odeiam a Igreja Católica, mas existem milhões que odeiam aquilo que pensam ser a Igreja Católica.”
(Venerável Arcebispo Fulton Sheen)

Este é o relato da minha conversão ao Catolicismo. É uma história pessoal, não um tratado de Teologia nem uma tentativa para converter alguém. Escrevi este relato para organizar meus pensamentos e facilitar quando perguntarem os motivos da minha conversão. No decorrer do texto indiquei vários livros ao leitor interessado em compreender os motivos que me levaram a tomar a decisão de seguir a Igreja Católica Apostólica Romana. Ao final eu proponho um roteiro de leituras para entender a fé católica e examinar as acusações que fazem à Igreja.

AVISO: Peço que leia os livros recomendados, em especial aqueles destacados em negrito, antes de tentar rebater as palavras aqui escritas. Não voltei para a Igreja por capricho ou comodismo; essa decisão custou muito esforço, oração e alguns sacrifícios. Esperar o mesmo do leitor é um ato de justiça. Quando o leitor discordar de algum ponto, o correto é buscar conhecer mais profundamente o que ensina a Igreja sobre o tema, o que dizem os grandes padres e apologistas católicos e então comparar com suas crenças. Aí sim o leitor poderá fazer um juízo sobre a fé. Só assim as suas palavras terão valor suficiente para serem ouvidas por mim. Ou como dizia um célebre e polêmico brasileiro: “Eu acho que o direito de ter opinião é proporcional ao interesse sincero que você tem pelo assunto. Se você não tem interesse pelo assunto para você sequer ler alguma coisa, por que nós devemos ter interesse de ouvir a sua opinião? ” (True Outspeak – 10.03.2008)

* * *

Sempre fui cristão. Fui batizado na Igreja Católica quando eu era um bebê. Por volta dos meus 6 anos, eu e minha família fomos para a igreja protestante. Desde então, minha família frequentou inúmeras denominações, quase todas tradicionais, e nunca mais tive contato com o catolicismo.


A 'Idade das Trevas'

Com o advento do "Facebook" logo me envolvi em discussões com ateus (eu prefiro chamá-los “neoateus”, por fazerem parte de uma geração recente de ateus militantes e superficiais cujo maior “guru” é Richard Dawkins, mas tem entre seus expositores famosos Neil deGrasse Tyson, Sam Harris e Christopher Hitchens). Não tardou em aparecer o famoso argumento da Idade das Trevas: durante o período de mil anos entre 500-1500 a Igreja Católica oprimiu o Ocidente através do misticismo e da ocultação do conhecimento, além de perseguir oponentes por meio da Inquisição. Isto bastava para comprovar que a religião, especialmente o Cristianismo, está na contramão do progresso, da ciência e da liberdade individual.
Sendo cristão é meu dever conhecer e testemunhar da verdade. Então comecei a estudar a tal Idade das Trevas para verificar se a Igreja foi responsável por tamanha crueldade. Pobre de mim! Descobri que aconteceu exatamente o contrário: num milênio de caos, fragmentação política, invasões de povos selvagens e peste, a Igreja foi a única instituição ocidental a manter-se estável, um verdadeiro porto seguro. O conhecimento da época dos gregos e romanos foi preservado através de muito trabalho dos clérigos católicos, como por exemplo os monges copistas, responsáveis por copiar livros inteiros à mão. Em vez de combater a ciência, a Igreja foi por muitos séculos a única instituição a fomentar o desenvolvimento científico na Europa. Ela foi a criadora das universidades, seus clérigos traduziram muitas obras da época romana e grega, além de permitir que debates acalorados com pensadores de outras culturas acontecessem dentro das suas universidades.

Essas e outras contribuições da Igreja Católica ao mundo ocidental estão cuidadosamente listadas no livro "Como a Igreja Católica construiu a Civilização Ocidental", de Thomas Woods Jr (
baixe gratuitamente aqui).

Quanto à famosa Inquisição minha surpresa foi ainda maior: aproximadamente 2000 pessoas foram condenadas à morte pelos Tribunais da Inquisição medievais (1231-1400dC). Durante as inquisições da Espanha e Portugal, as mais violentas, 6000 pessoas morreram nos 500 anos de duração dos tribunais eclesiásticos ibéricos. Considerando a população ibérica e europeia nos níveis da Idade Média (bem baixos, o que aumentará o valor que mostrarei a seguir, de forma a mostrar ao leitor o “pior caso” da Inquisição), temos que a pior inquisição, a ibérica (de Portugal e Espanha) condenou à morte 17 pessoas a cada 100 mil habitantes, por ano. A inquisição medieval, mais branda, condenou à morte 0,08 pessoa a cada 100 mil habitantes, por ano (fontes: 
Fordham University / Catholic Bridge). Só para comparar, no Brasil 22 pessoas a cada 100 mil habitantes morreram em acidentes de trânsito (dados de 2013).

O grande historiador protestante Phillip Schaff afirma em seu livro 
"History of the Christian Church” (vol. V, New York, 1907, p.524): 
Para vergonha das igrejas protestantes, a intolerância religiosa e até a condenação à morte continuaram muito tempo depois da Reforma. Em Genebra esta perniciosa teoria foi posta em prática pelo Estado e pela igreja, admitindo até mesmo o uso de tortura e do testemunho de crianças contra seus próprios pais, com a autorização de Calvino. Bullinger, na Segunda Confissão Helvética, anunciou o princípio pelo qual a heresia poderia ser punida como os crimes de assassinato ou traição.”

Não se trata da tática petista de justificar um erro apontando o erro do outro. Tortura é inaceitável sob qualquer ponto de vista. No entanto, devemos ser justos e agir com a mesma rigidez no caso dos morticínios realizados por outros grupos, como protestantes (veja o caso dos Anabatistas e a caça às bruxas, fenômeno exclusivamente protestante – 
saiba mais aqui), islâmicos (sem comentários, os franceses que o digam) e mesmo ateus: durante a Revolução Francesa, que nos ensinam ter sido fundamentada nos princípios de “Igualdade, Liberdade e Fraternidade”, foram mortas 140 mil pessoas em cinco anos segundo a Enciclopédia Encarta. Quer dizer, uma revolução de cunho ateu matou 100 pessoas a cada 100 mil habitantes por ano, 5 vezes mais do que a pior inquisição (só pra constar, no Brasil morreram 28 pessoas a cada 100 mil habitantes por homicídio em 2013: a Revolução Francesa matou 3 vezes mais que os criminosos brasileiros).

Para encerrar este assunto, a própria Igreja admitiu os abusos cometidos na Inquisição. Tanto que ela abriu os arquivos da Inquisição a um grupo de 30 historiadores reconhecidos internacionalmente, para que eles investigassem os fatos. 

Todos esses fatos sobre a inquisição católica estão documentados em vários livros, entre os quais destaco: "Atas do Simpósio sobre a Inquisição" (1998), de Agostino Borromeo, "A Idade Média que não nos ensinaram", de Regine Pernoud, "Sete Mentiras sobre a Igreja Católica", de Diane Moczar.



Este estudo sobre o papel essencial da Igreja Católica na Idade Média fez com que eu a admirasse. Mas isso era só o começo. No início de 2015 decidi então conhecer a fé católica. Se o papel histórico da Igreja Católica na Idade Média foi muito diferente do que me ensinaram, será que a fé católica não me surpreenderia também? Era isto o que eu precisava conferir.

Escolhi livros que explicassem a fé católica ao público protestante e testemunhos de conversões de protestantes ao catolicismo. São estes: "Catholicism for Protestants", de Shane Shaetzel, "Rome Sweet Home", de Scott e Kimberly Hahn (encontrado no Brasil sob o título 'Todos os Caminhos levam a Roma'), "Born Fundamentalist, born Again Catholic", de David Currie, e "A Fé Explicada", do Pe. Leo J. Trese. Todos os conceitos mencionados daqui em diante foram exaustivamente explicados nesses livros.

Da minha experiência pessoal, creio que os principais problemas dos protestantes/evangélicos com o Catolicismo são a veneração dos santos e de Maria. Existem outros pontos de conflito, mas estes dois são os primeiros que surgem à mente do protestante comum.

Naturalmente, estes foram os primeiros problemas que procurei por explicações. Tratam-se da Intercessão dos Santos. Por que o católico reza a Maria e aos santos? Isso não é idolatria? Não. O católico não considera a oração uma forma de adoração. Da mesma forma que pedimos oração a outros irmãos da igreja, o católico pede oração a pessoas que viveram vidas extraordinárias aqui e que agora estão vivas no Céu, diante de Deus.

Especificamente no caso de Maria, a mãe de Deus, creio que grande parte do problema protestante se resolva ao compreender como os católicos entendem a Intercessão dos Santos. Só resta acrescentar que ao católico é dogma de fé que Maria é a criatura mais santa dentre todas as criaturas de Deus. Os motivos dela ser assim considerada estão nos documentos da doutrina católica, e o estudo das doutrinas marianas chama-se Mariologia. Temos então o seguinte raciocínio:

1) A oração dos santos é mais eficaz porque eles estão em plena Comunhão com Deus, no Céu.

2) Maria é a mais santa dentre todos os santos.

3) Logo (aceitas as premissas 01 e 02), é razoável pedir que Maria interceda por mim diante de Cristo.

Ao entender isto, fica fácil entender também porque os católicos devotam tantas orações e cerimônias aos santos em geral e à Maria em particular. Eles não acreditam que santos são “deuses” e sim que os santos, hoje no Céu, são excelentes intercessores dos simples cristãos que estão aqui. Recomendo ler o que ensina oficialmente a Igreja a respeito de Maria: parágrafos 963-975 do Catecismo.

O último conceito que é útil estudar para entender os católicos neste assunto dos santos é a diferença entre adoração e veneração. Adoração é o culto prestado unicamente a Deus. Assim como na tradição judaica, o católico acredita que não existe verdadeira adoração sem oferecimento de sacrifício, que é o que acontece na Missa. O católico só oferece sacrifícios a Deus. Já a veneração é uma forma de prestar homenagem, uma demonstração pública de respeito. Da mesma maneira como homenageamos grandes personalidades políticas, artísticas ou dos negócios, o católico homenageia, dentro do contexto cristão, aqueles que viveram vidas exemplares.

Ao contrário do que muitos pensam, a Igreja tem 2 mil anos de idade e já estudou profundamente os Mandamentos de Moisés, em especial os dois primeiros (sobre a idolatria e imagens). O Catecismo faz um resumo (citando a Bíblia, como sempre) nos parágrafos 2129-2132.

Então, a meu ver, se é ilícito venerar os santos e encomendar-lhes orações, então é muito mais ilícito homenagear qualquer pessoa desta terra, ou pedir que algum irmão ore por mim. Se os santos, que viveram unicamente para Cristo, são indignos de homenagem, quão dignos seremos nós, meros mortais que não conseguem passar 01 dia se sacrificando por Deus?

Existem muitos bons livros dedicados a explicar a devoção mariana, seu surgimento e desenvolvimento na História e porque ela não é uma forma de idolatria. Recomendo três livros que tratam toda essa questão num único volume: 
"Behold your Mother", de Tim Staples; "Mary, Mother of the Son", de Mark Shea e "The Marian Mystery: Outline of a Mariology", de Denis Farkasfalvy. Estes livros demonstram que já nos primeiros séculos de Cristianismo havia devoção à Mãe de Deus.


Dos motivos de não continuar protestante

Entender essas práticas católicas serviria apenas para desmistificar a minha visão do catolicismo. Não foi isso que me fez mudar de vida. Foi somente quando estudei e refleti sobre dois assuntos pouco tratados pelos protestantes que fiquei numa posição insustentável e tive que tomar a decisão sobre minha fé.

O principal fundamento teológico do Protestantismo, isto é, de todas as denominações não-católicas que surgiram a partir do ano 1500 é o Sola Scriptura. Este princípio ensina que “somente a Escritura é a suprema autoridade em matéria de vida e doutrina; só ela é o árbitro de todas as controvérsias” (cf. http://mackenzie.br/6966.html, acesso em 26.7.2015). É ele que justifica a famosa pergunta dos "evangélicos": “Onde isso está na Bíblia?”. Esta é a pergunta que os católicos mais escutam dos protestantes.

O grande problema com o Sola Scriptura é que ele mesmo não é bíblico. Você leu isso mesmo. O princípio que afirma que a Bíblia é a única autoridade em matéria de fé não é bíblico. Não precisa acreditar em mim. Procure na Bíblia. Pergunte a qualquer teólogo protestante em qual parte da Bíblia está o Sola Scriptura. Ele não saberá responder. O que me deixou mais chocado foi descobrir que o Sola Scriptura é simplesmente aceito como um dogma, uma ideia que não precisa de provas [é irônico os protestantes acusarem os católicos de dogmáticos quando a base da crença protestante é um superdogma sem fundamento]. E isso não sou eu quem diz:


Existem evidências internas e externas da inspiração e divina autoridade das Escrituras, mas estes atributos não são passíveis de 'prova'. A única evidência que importa é o “testemunho interno do Espírito” no coração do leitor. Ênfase de Calvino: 'A menos que haja essa certeza [pelo testemunho do Espírito], que é maior e mais forte que qualquer juízo humano, será fútil defender a autoridade da Escritura através de argumentos, ou apoiá-la com o consenso da Igreja, ou fortalecê-la com outros auxílios. A menos que seja posto este fundamento, ela sempre permanecerá incerta' (8.1.71).”
(Fonte: http://mackenzie.br/6966.html acesso em 26.07.2015)

Ou seja, a “prova” de que uma interpretação particular da Bíblia é inspirada por Deus é uma “certeza maior e mais forte que qualquer juízo humano”. Basta se sentir certo para estar correto(!).


Tome a seguinte afirmação: “Não existe verdade”. Quando alguém afirma isso já se contradiz, porque essa mesma frase é em si mesma uma verdade (ou a pessoa pensa que é uma verdade). Na verdade, o que a pessoa quis dizer é: “Não existe verdade – exceto esta aqui”. É um princípio arbitrário, afinal, só é verdade porque quem o enuncia diz que é verdade. Um princípio falho em si mesmo não pode ser verdade. É o mesmo problema do Sola Scriptura.

Sola Scriptura não encontra fundamentação bíblica e nem histórica. Os cristãos primitivos, aqueles que viveram nos primeiros 300 anos depois de Cristo, nunca pronunciaram o Sola Scriptura, pelo contrário. Todos acreditavam na necessidade de existir uma autoridade central, outorgada pelo próprio Cristo, para interpretar as Escrituras. Um testemunho famoso (mas não o único) é o de Santo Agostinho: “Eu não acreditaria no Evangelho, se a isso não me levasse a autoridade da Igreja Católica” (CIC, 119). Em sentido oposto, não há nenhum registro dos primeiros cristãos afirmando que as Escrituras são a única e suprema autoridade na fé.

Outro problema com o Sola Scriptura é que nos primeiros 300 anos de Cristianismo não existia Bíblia. É isso mesmo. O cânon, o conjunto dos livros cristãos que formaram a Bíblia, só foi definido e ntre 367 e 405 dC (curiosamente, até um historiador protestante reconhece estas datas: veja aqui). Durante todo esse período, qual foi a autoridade suprema dos cristãos em matéria de fé? Pior: até a invenção da imprensa em 1455 pouquíssimos livros estavam em circulação, porque eram de difícil produção e conservação. Assim, a quem os cristãos podiam recorrer durante quase 1500 anos, já que poucos deles tinham acesso às Escrituras?

Além disso, “pelos frutos os conhecereis”: hoje existem dezenas de milhares de denominações protestantes, e cada uma delas alega possuir a “verdadeira interpretação” das Escrituras. Quem está falando a verdade? Qual é a verdadeira fé e a verdadeira igreja? Qual o modo correto de interpretar a Bíblia? O que vale pra hoje e o que não vale mais? [o Espírito Santo entraria em evidente contradição, ensinando uma coisa a determinada comunidade e outra coisa diferente, – muitas vezes mesmo contraditória, – a uma outra comunidade?]

Para ilustrar a fragilidade do Sola Scriptura, elencarei os 5 pontos levantados no vídeo abaixo [já publicado anteriormente aqui em 'O Fiel Católico']:


1) Onde a Bíblia diz que eu devo provar alguma coisa pela Bíblia?

2) Por que a minha interpretação da Bíblia (em meu caso, fundamentando a doutrina católica) está errada e a sua correta? Eu também estou me guiando pela Bíblia, nós só discordamos no que ela quer dizer.

3) Talvez você não está compreendendo o significado correto da Bíblia. Um exemplo: se eu lhe escrever o seguinte bilhete: “Eu não disse que você roubou dinheiro.” você conseguiria entendê-lo? Parece que sim, mas uma frase de 07 palavras pode ter vários significados. Pode ser que EU não disse que você roubou dinheiro, mas alguém disse. Pode ser que eu não DISSE, mas posso ter escrito ou pensado que você roubou dinheiro. Pode ser que eu não disse que VOCÊ roubou dinheiro, posso ter falado de outra pessoa. Pode ser que eu não disse que você ROUBOU dinheiro, você pode ter perdido ou queimado dinheiro. Pode ser que eu não disse que você roubou DINHEIRO, você pode ter roubado outra coisa. Uma simples frase de 07 palavras tem pelo menos cinco significados diferentes, a depender da ênfase dada a cada palavra. Agora me responda: não é a Bíblia muito mais complicada que uma frase de 07 palavras?

4) O que está em confronto não é o que a Bíblia ensina, mas o que nós interpretamos da Bíblia.

5) De onde vieram os livros do Novo Testamento? Como eles foram parar na Bíblia? Quem afirma rejeitar a Tradição porque segue apenas a Bíblia não pode fazer isso, porque foi a própria Tradição católica quem escolheu quais livros pertencem ao Novo Testamento. Em lugar algum a Bíblia diz quais livros fazem parte dela. Então, o simples fato de ser “biblista” só é possível graças à Tradição católica.

A Bíblia não caiu do Céu. Durante quase 400 anos os cristãos lutaram para reconhecer, aos poucos, os livros inspirados, até que concílios católicos, compostos por bispos católicos, definiram os livros da Bíblia. Foi a autoridade da Igreja que encerrou a discussão sobre os livros inspirados.

Então, para encerrar este assunto Sola Scriptura, e resumindo toda a questão: não é bíblico, não é lógico, não é histórico e teve consequências catastróficas para o Cristianismo. Foi um conceito inventado depois de 1500 anos de Cristianismo. Sendo assim, é no mínimo prudente considerar que a posição católica (de acreditar na autoridade da Bíblia, mas também na da Tradição conservada pela Igreja) é no mínimo plausível. Não estou pedindo para você se converter, apenas para reconhecer que não é absurdo a Palavra de Deus não se restringir a um livro. Isto é o mínimo que se espera de alguém honesto consigo mesmo.

Por fim, o problema Sola Scriptura foi discutido exaustivamente por muitos autores católicos. Alguns livros que eu recomendaria a quem deseja saber como o católico trata esse princípio seriam estes: "Not By Scripture Alone", de Robert Sungenis (uma verdadeira 'bomba atômica' contra o Sola Scriptura), e "100 Biblical Arguments Against Sola Scriptura", de Dave Armstrong.

Diante de tudo isso, eu não podia mais aceitar o fundamento do Protestantismo, o Sola Scriptura. A Bíblia sozinha não é suficiente para resolver todos os conflitos da vida cristã. Simplesmente havia coisas demais sendo “deduzidas” (eu prefiro dizer ‘inventadas’) no calor do momento de uma época. Isso sem mencionar que a Bíblia é uma coleção de livros complexa demais para que um fiel comum, sem condições de estudar grego, latim, hebraico , aramaico, Filosofia e Teologia, pudesse interpretar de forma mais correta que o corpo de toda a Tradição cristã de 2 mil anos. Seria muita arrogância. Foi nesse momento que eu, pelo menos em consciência, deixei o Protestantismo.


Rome, Sweet Home
[Nota de Henrique Sebastião, editor de 'O Fiel Católico': o segundo Motivo que será apresentado pelo autor para deixar o Protestantismo, a seguir, é exatamente o mesmo Motivo final e definitivo de minha própria conversão à Igreja de Cristo]

Deixar o Protestantismo e todas as denominações protestantes é uma coisa. No entanto, faltava um motivo claro e inegável para eu aceitar a Igreja Católica.

Este motivo foi a Eucaristia.

A Eucaristia é centro de toda a fé católica. À distância, [até se] parece com a “Santa Ceia” dos protestantes, porém infinitamente mais carregada de sentido e importância: o católico acredita que na Eucaristia o pão e o vinho se transformam, milagrosamente, no Corpo e no Sangue de Cristo. Assim, podemos dizer com razão que o católico “absorve” o próprio Cristo, presente de maneira real na celebração da Eucaristia. Loucura? Canibalismo? Bom, os católicos não foram os primeiros a ouvirem essas acusações.

No Evangelho de João, capítulo 6, o próprio Cristo profere estas palavras:


Na verdade, na verdade vos digo que, se não comerdes a Carne do Filho do homem, e não beberdes o seu Sangue, não tereis vida em vós mesmos. Quem come a minha Carne e bebe o meu Sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Porque a minha Carne é verdadeiramente Comida, e o meu Sangue verdadeiramente é Bebida. Quem come a minha Carne e bebe o meu Sangue permanece em Mim e eu nele. Assim como o Pai, que vive, me enviou, e eu vivo pelo Pai, assim, quem de Mim se alimenta, também viverá por mim.”
(João 6,53-57)

Logo em seguida, pela primeira vez em seu Ministério, Jesus perde discípulos por causa de um ensinamento. Eles consideraram essas palavras de Jesus “muito duras” (vs 60).

A resposta de todo protestante é alegar que Jesus disse essas palavras no sentido figurado, isto é, comer sua Carne e beber seu Sangue seria um símbolo. [Ora, é claro como água límpida que esta versão é simplesmente absurda! Se fosse apenas um símbolo, por que alguns ou muitos discípulos se escandalizariam a ponto de deixar de seguir Jesus? Eles estavam acostumados com as parábolas do Mestre. Por que razão apenas quando Ele ensinou que seu Corpo e Sangue, literalmente, se tornariam Pão e Vinho, e que os verdadeiros seguidores deveriam se alimentar dEle, criou-se tanto celeuma?]

Outro problema com essa versão é que ela faz de Jesus um insensível que gostava de induzir seus seguidores ao erro e à blasfêmia. Explico. Em todo o Evangelho (nos 04 livros, Mateus, Marcos, Lucas e João) Jesus Cristo fez questão de explicar o significado de suas palavras quando falava por meio de linguagem simbólica, ou em parábolas. Veja no caso do “nascer de novo” a Nicodemos (João 3) e em todas as parábolas (semeador, joio e trigo, videira, talentos, etc). Jesus Cristo, sendo Deus, não induz pessoas ao erro, ao pecado gravíssimo da blasfêmia. No entanto, justamente no caso da Eucaristia, Ele se calou. O único cenário que justifica Jesus permitir que vários dos seus discípulos O abandonassem é por ter dito exatamente o que Ele quis dizer. Não há forma mais clara de dizer que deveríamos beber Seu sangue e comer Sua carne.

Além da evidência do próprio Cristo, há a evidência histórica: já os primeiros Apóstolos, e seus primeiros sucessores, acreditavam que Jesus estava realmente presente no Pão e no Vinho da Ceia. É por isso que Paulo fez a famosa advertência em 1 Coríntios 11,29: “Porque o que come e bebe indignamente, come e bebe para sua própria condenação, não discernindo o corpo do Senhor.” É pecado grave participar da Ceia sem discernir ali o corpo de Cristo. Ora, se fosse apenas pão e vinho como símbolos do Corpo e Sangue do Senhor, porque esta tão severa e específica advertência?

Mais: ainda que os protestantes insistam em dizer que a Ceia é apenas um memorial, a palavra em aramaico que Jesus utiliza para falar de Seu corpo na Ceia é a mesma que Ele usa para falar de Seu corpo na cruz! Tornar o corpo de Cristo na Ceia simbólico é tornar a Crucificação simbólica(!).

Estas e outras provas a favor da Presença Real de Cristo na Eucaristia estão muito bem explicadas nos livros que eu grifei no meio deste relato. Além deles, o melhor livro sobre esse assunto provavelmente é "O Banquete do Cordeiro", de Scott Hahn.

Sabendo que o Cristo, capaz de sofrer uma morte cheia de torturas por nós, não seria capaz de perder discípulos por causa de uma confusão de palavras, eu não tenho motivos para acreditar em outra coisa que não seja o sentido literal das palavras de Jesus: que precisamos comer Sua carne e beber Seu sangue para ter vida em nós. E conhecendo que na Igreja Católica eu poderei participar do Banquete do próprio Cristo, o Noivo, o Cordeiro, e que Ele, Deus encarnado, encontra-se fisicamente presente na Santa Missa, somente o orgulho obstinado poderia servir de motivo para não me render à Igreja Católica Apostólica Romana.

O que mais eu deveria fazer se soubesse que Jesus Cristo está fisicamente presente em algum lugar?


E eis que estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos.”
(Mateus 28,20)


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Este é o breve relato dos motivos da minha conversão ao Catolicismo. Não tenho a intenção de torná-lo um tratado religioso ou histórico sobre a fé católica e, por essa razão, não tratei de outros temas de conflito com protestantes. Pra isso existem centenas de (bons) livros, e eu posso indicar alguns ao leitor interessado e honesto, o primeiro deles é o “manual” católico, – o CIC. – Por fim, que estas palavras sejam acolhidas em terreno fértil, para que produzam muitos frutos para a glória de Deus, nosso Pai.

Em Cristo Jesus Nosso Senhor,
João Marcos
Olímpia, São Paulo, 28.07.2015

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Complemento da bibliografia recomendada e indicações do autor

1. Catecismo da Igreja Católica;



4. O excelente (foi o primeiro livro sobre a fé católica que eu li) "Catholicism for Protestants", por Shane Shaetzel. Neste livro o autor, católico bem no meio do Bible Belt (a região mais protestante dos EUA), responde de maneira curta, organizada e dentro da doutrina católica às dúvidas levantadas pelos protestantes. É um excelente material para começar a remover preconceitos sobre a Igreja.

5. "Coleção História da Igreja", por Daniel-Rops (10 volumes), além dos livros já citados no meio do relato.

6. Testemunhos de convertidos à Igreja Católica: eu sempre achei que só pessoas desonestas permaneceriam ou se converteriam à Igreja Católica. Estava redondamente enganado. E foi só depois que eu saí do meio (protestante) é que percebi como a grande maioria dos protestantes ainda pensa isso dos católicos. Espero que estes livros e vídeos ajudem a desmistificar esta falsa noção: 


• "Todos os caminhos levam a Roma", por Scott e Kimberly Hahn (leia a resenha); 


"Ex-pastor Paulo Leitão se converte ao Catolicismo", um testemunho emocionante em vídeo (assista aqui); 
O testemunho brilhante da conversão de Fábio Salgado à Igreja Católica (repleto de dicas de livros, leia aqui)
"Lista de 201 ex-protestantes conversos ao Catolicismo" (leia aqui);

Todos os membros da "Igreja Cristã Maranatha" (Detroit, EUA) se convertem ao Catolicismo (leia aqui). 

Com esses testemunhos espero que o leitor entenda que pessoas com motivos sérios, fundamentados, e com uma prática de vida piedosa, escolheram a Igreja Católica. Não é uma escolha por conveniência, malícia ou ignorância. Muitas dessas pessoas perderam amigos, familiares e todo seu círculo social de uma vida inteira quando escolheram a fé católica. Todas elas eram cristãos estudiosos, inteligentes, conhecedores da Bíblia e ativos na vida ministerial das suas igrejas. Se meu exemplo não basta, espero então que o exemplo desses irmãos em Cristo o ajudem a perceber que a fé católica não é uma mentira ou tradição de homens. 



quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

“NÃO ALÉM DO QUE ESTÁ ESCRITO” (1 COR 4,6): SOLA SCRIPTURA?




 “NÃO ALÉM DO QUE ESTÁ ESCRITO”
(1 COR 4,6)
SOLA SCRIPTURA?

A expressão contida em 1 Cor 4,6, em sua tradução mais comum para a língua portuguesa (“não ir além do que está escrito”), tem servido a alegações da proclamação bíblica Sola Scriptura, princípio fundamental do Protestantismo. Entretanto, o texto original seria traduzido literalmente como “o não acima do que escrito”, cuja ausência de verbos e outros complementos somente permite uma tradução mediante a especulação do seu real significado, a qual, para ser legítima, deve respeitar o respectivo contexto. A principal teoria é que se trata de um ditado comum na época, e mesmo exegetas protestantes que veem em “o que está escrito” uma referência à totalidade do Antigo Testamento têm reconhecido que esta teria o fim limitado pelo contexto, sendo uma lembrança da condição pecaminosa e limitada do homem. Pertinente ainda é a tese de que essa expressão, aparentemente sem sentido no contexto, seria uma glosa de copista que passou a ser inserida no texto. Em todo caso, a negação da tradição oral e da autoridade da Igreja, sendo a negação da própria pregação do apóstolo, e sendo contrária ao ensinado por São Paulo em outros textos, não pode abrigar-se aqui. E desse modo, não indo além do que está escrito, descabe a extrapolação que vê nesse trecho “Sola Scriptura!”.

A Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios repreende os habitantes de Corinto por estarem se dividindo em partidos em razão do orgulho por terem tido tal ou qual mestre (um diz eu sou de Paulo, outro eu sou de Apolo, outro eu sou de Kefas, 1 Cor 1,12). Encontra-se, no versículo 6 do capítulo 4 a expressão “aprendam de mim a não ir além do que está escrito”, que tem sido muito usada na tentativa de validar o Sola Scriptura (somente a Bíblia), princípio fundamental do Protestantismo.

O versículo, na versão Almeida Corrigida Fiel, tem a seguinte redação: “E eu, irmãos, apliquei estas coisas, por semelhança, a mim e a Apolo, por amor de vós; para que em nós aprendais a não ir além do que está escrito, não vos ensoberbecendo a favor de um contra outro” (sem destaque no original).

Na Nova Tradução na Linguagem de Hoje já encontramos: “aprendam o que quer dizer o ditado: ‘Obedeça ao que está escrito’”. Já na famosa King James Version, traduzindo literalmente, temos: “que aprendais em nós a não pensar dos homens acima do que está escrito”. A Tradução Ecumênica da Bíblia já tem a redação “... a nosso exemplo, aprendais a não vos inchar de orgulho, tomando o partido de um contra o outro”. A versão portuguesa “O Livro” já traz: “... tenho vindo a dizer: o que vocês pensam deve ser submetido ao que dizem as Escrituras”. A chamada Versão Fácil de Ler já escreve: “... aprendam isto: ‘Sigam somente o que as Escrituras dizem’”. Na Nova Bíblia Viva encontramos: “... lhes digo: que vocês não devem ter preferências pessoais”. E traduzindo literalmente a famosa Amplified Bible temos: “vocês aprendam [a pensar dos homens de acordo com a Escritura e] não ir além do que está escrito”.

Pode-se dizer que a parte antecedente (“E eu, irmãos, apliquei estas coisas, por semelhança, a mim e a Apolo, por amor de vós; para que em nós aprendais...”) e a consequente (“... não vos ensoberbecendo a favor de um contra outro”), guardadas as respectivas adaptações de concordância, mantêm-se constantes.

Entretanto, especificamente o trecho que diz “não ir além do que está escrito” aparece com grandes variações: desde o mais comum “não ir além” ou “não ultrapassar” o que está escrito, passando por “não pensar do homem acima” do que está escrito, pela afirmação de que se trata de um ditado que diz “obedeça ao que está escrito”, chegando a “o que vocês pensam deve ser submetido às Escrituras”, “sigam somente as Escrituras”, “vocês não devem ter preferências pessoais” ou “não devem se inchar de orgulho”.

Porque esse trecho tem tantas traduções tão variadas, umas dizendo não vá além do que está escrito, outras não pensar dos homens mais do que o que está escrito, outras simplesmente absorvendo essa pequena expressão na mensagem geral do versículo dizendo não se encham de orgulho, enquanto outras ainda dizendo andem conforme as Escrituras?

A resposta é que o texto grego antigo em que essas traduções são baseadas não possui verbo. Na verdade é um texto cuja tradução e compreensão tem desafiado estudiosos há séculos.

O texto grego, transliterado, é “tó mé hiper rá gegráptai”, que literalmente é “o não acima do que escrito”, ou “o não acima do que está escrito”, ou ainda “o não além do que está escrito”.

Ocorre que ao ser traduzido, para que esse texto tenha sentido, é preciso especular. Há um verbo implícito? Mas qual? Ir, pensar, considerar? Mas o que? Sobre o que? “O escrito” são as Escrituras? Mas por que não é citado nenhum trecho como nos outros locais da mesma carta onde aparece a expressão “está escrito”? Essa frase tão estranha seria um ditado conhecido na época? Mas o que significava?

Diferentes suposições (e são sempre e apenas suposições), levam a traduções e interpretações completamente diferentes.

Como, então, entender esse trecho? Parece que a razão está com Gordon D. Fee: “Seja o que for que signifique, o objetivo de tudo que precede, como o resto do argumento demonstra, é a proposição da cláusula final: que ‘vocês não se orgulhem de um contra o outro’” (The New International Commentary on the New Testament: The First Epistle t0 the Corinthians, Eerdmans, 1987, p. 166, original em inglês).

Portanto, seja um apelo aos princípios do Antigo Testamento, como a condição pecaminosa do homem, seja um ditado que tenha um significado como o conhecido “não procure pelo em ovo”, ou “chifre em cabeça de cavalo”, “não complique as coisas”, seja uma remissão ao que Paulo já escrevera nesta ou noutra carta, etc., seja o que for, esse trecho de apenas cinco palavras (“tó mé hiper rá gegráptai”) deve ser interpretado no contexto, e não numa extrapolação de sentido que contraria os objetivos do versículo e da Carta como um todo, para atender aos objetivos do intérprete.

Com essa visão parecem concordar a maioria, senão todos os exegetas protestantes de renome, como vemos a seguir.

No Comentário Bíblico NVI, editado por F. F. Bruce (Editora Vida, 2008), temos: “... Não ultrapassem o que está escrito. Para eles, é a necessidade de aprender o lugar subordinado do homem e da posição exaltada de Deus; a sabedoria humana sendo substituída pela de Deus, os líderes humanos, substituídos por Cristo. Essa é a cura para as facções – o orgulho inchado que iria ‘favorecer um e desprezar o outro’ (NEB) – e para o orgulho presunçoso deles, que confundia os dons de Deus com as suas próprias realizações” (Paul W. Marsh, 1 Coríntios, p. 1881).

Já Leon Morris escreve na reconhecida Série Cultura Bíblica (Editora Vida Nova): “Podemos muito bem conjeturar que não ultrapasseis o que está escrito(‘não além do que está escrito’) era um lema familiar a Paulo e a seus leitores, dirigindo a atenção para a necessidade de conformidade com a Escritura. Portanto, ele está dizendo que, considerando o que ele teve que dizer acerca de Apolo e de si próprio, eles aprenderão a ideia escriturística da subordinação do homem. Uniformemente a Bíblia exalta a Deus. A ênfase dada pelos coríntios às pessoas dos mestres significava que eles estavam tendo os homens em demasiado alta consideração” (I Coríntios: introdução e comentário, 1986, p. 62).

Hernandes Dias Lopes, no Comentário Hagnos: “Os coríntios julgaram Paulo, Apolo e Pedro por suas preferências e preconceitos. Entretanto, Paulo diz que não devemos julgar uns aos outros por esses critérios. (...) O que significa ultrapassar o que está escrito? Se você tem de examinar alguém, limite-se ao ensino das Escrituras. A única base de avaliação é a Palavra de Deus e não nossas opiniões. Não superestime os ministros além da medida das Escrituras” (I Coríntios: como resolver conflitos na igreja, 2008, pp. 76-77).

Simon J. Kistemaker, no Comentário do Novo Testamento (Editora Cultura Cristã), afirma que “A maioria dos estudiosos acredita que essas palavras ‘são evidentemente um provérbio, ou um princípio, em fórmula proverbial’. Pode ter sido um ditado corrente na arena política da época de Paulo e que servia para a promoção da unidade. Paulo, dizem esses especialistas, faz uso de uma máxima familiar nos círculos de Corinto para apelar para o fim das divisões na igreja e para promover a unidade” (2003, pp. 194-195).

Thomas Reginald Hoover, no Comentário Bíblico: 1 e 2 Coríntios (CPAD): “Não devemos ir além ‘daquilo que está escrito’, gloriando-nos em determinados pregadores ou mestres. Devemos ‘gloriar- nos no Senhor’ (Jr 9.23,24). Uma razão disso é que não sabem os motivos das outras pessoas. Escondemos os nossos motivos dos nossos semelhantes e, às vezes, nem percebemos a nossa própria motivação. Mas Deus tudo vê, e julgará até os motivos das nossas ações” (1999, p. 38).

Mesmo João Calvino, que sistematizou a doutrina protestante, entendeu apenas que “A frase ‘acima do que está escrito’, pode ser explicada de duas maneiras, ou seja: como uma referência ao que Paulo escreveu, ou às provas bíblicas a que fez referência. Visto, porém, que isso não é muito importante, os leitores estão livres para escolherem o que preferirem” (I Coríntios, Edições Parakletos, 2003, p. 135).

Poderíamos multiplicar as citações... Certo é que, no contexto, a expressão “o não acima do que está escrito”, não pode ser vista senão como algo que tenha um sentido compatível com “estou lhes ensinando a não se orgulharem em favor de um e contra outros, criando facções como se Cristo estivesse dividido”.

Donde razão assiste a traduções como da TEB e da Nova Bíblia Viva, que, ao invés de transferirem ao leitor comum da Bíblia o problema de entender o que essa enigmática expressão do texto original significa, apresenta o significado integral do versículo.

Lado outro, repreensível a tradução tendenciosa, como da Versão Fácil de Ler (VFL) elaborada pela Bible League International, que força o texto no sentido que mais favorece sua posição doutrinária, assumindo pressuposições que nem os exegetas protestantes (pelo menos a grande maioria) reconhece como legítimas.

Não podemos concluir esse estudo, enfim, sem mencionar algo de suma relevância sobre essa expressão (“o não acima do que está escrito). Desde o trabalho do teólogo protestante holandês Johannes Marinus Simon Baljon (De Tekst der Brieven van Paulus aan de Romeinen, de Corinthiërs en de Galatiërs als voorwerp van de conjecturaalkritiek beschouwd, Utrecht 1884, pp. 49–51) é grandemente apoiada a tese de que esse trecho é uma glosa, isto é, um acréscimo feito por um copista, que passou para as futuras cópias.

Assim, “o não acima do que [está] escrito” seria uma anotação de que o termo “não” (de “não vos ensoberbecendo”) estava inserido acima do texto corrente no original, algo que ocorre em textos escritos à mão. Nas cópias posteriores o que era apenas uma anotação marginal (glosa) foi sendo copiado no texto e lido como sua parte integrante. Para a chamada crítica textual, ciência que tem buscado chegar o mais próximo possível do texto primitivo da Bíblia mediante o estudo comparativo de manuscritos e a identificação de possíveis inserções e erros ocorridos ao longo de quase 1500 anos de cópias à mão, isso não é algo de se estranhar. É bom lembrar aqui que a Bíblia não caiu do céu impressa, encadernada, com zíper, índice, com todos os livros juntos e divididos em capítulos e versículos.

A nota de estudos na TEB, com efeito, registra: “O texto traz: o não acima do que está escrito. É difícil dar um sentido aceitável a esse texto. Uma hipótese engenhosa, adotada aqui, supõe tratar-se da nota marginal de um copista relativa a uma particularidade gráfica (o ‘não’ está escrito acima do ‘a’) e que um copista pouco inteligente transladou para o texto. Outros pensam num provérbio...” A Bíblia de Jerusalém anota semelhante observação.

E no prestiagiado Comentário Bíblico São Jerônimo encontramos: “‘não ir além do que está escrito’: J. Strugnell demonstrou (CBQ36 [1974] 555-58) que to mé hyper ha gegraptai é o comentário marginal de um copista em cujo exemplar faltava um mé, ‘não’, que ele introduziu antes de heis” (Jerome Murphy-O ’Cornnor, O. P., Primeira Carta aos Coríntios, p. 462, em Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos, Academia Cristã, Paulus, 2011).

Erro de copista ou não, contudo, “não ir além do que está escrito”, não é uma proclamação do Sola Scriptura, e, de fato, não vem sendo apresentado como tal por estudiosos e tradutores da Bíblia dignos de nota. Essa é uma expressão que apenas quando traduzida com o acréscimo de certas palavras, e posta fora do contexto em que se encontra na Bíblia, parece proclamar o Sola Scriptura. A expressão pode ser uma referência a um ditado ou lema da época, ou, caso se refira à Bíblia, à condição pecaminosa do ser humano, mas em ambos os casos, como reforço à reprimenda ao orgulho dos coríntios, que é o real objeto do texto bíblico.

Ademais, tenha-se em conta que se São Paulo estivesse proclamando o Sola Scriptura, estaria ele negando seu próprio ensinamento oral, que ele manda guardar e transmitir de modo igualmente oral, assim como seu ensinamento sobre a autoridade, especialmente da Igreja.

Com efeito, Paulo não diria para rejeitar a Tradição, quando ensinou em 2 Tm 2,2 “E o que de mim, entre muitas testemunhas, ouviste, confia-o a homens fiéis, que sejam idôneos para também ensinarem os outros”, em 2 Tm 3,14 “Tu, porém, permanece naquilo que aprendeste, e de que foste inteirado, sabendo de quem o tens aprendido”, e em 2 Ts 2,15 “Então, irmãos, estai firmes e retende as tradições que vos foram ensinadas, seja por palavra, seja por epístola nossa”, entre outros trechos que enfatizam o valor dos ensinamentos do Apóstolo dados oralmente, assim como da transmissão oral desse ensinamento.

São Paulo, também não poderia estar negando a Autoridade da Igreja, quando proclama a origem divina da autoridade: “Toda a alma esteja sujeita às potestades superiores; porque não há potestade que não venha de Deus; e as potestades que há foram ordenadas por Deus. Por isso quem resiste à potestade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos a condenação” (Romanos 13,1-2); e a legitimidade desta para julgar: “Ousa algum de vós, tendo algum negócio contra outro, ir a juízo perante os injustos, e não perante os santos? (…) Não há, pois, entre vós sábios, nem mesmo um, que possa julgar entre seus irmãos?” (1 Coríntios 6,1-5). E se um gesto vale mais que mil palavras, então Atos 15, que narra o Concílio de Jerusalém provocado por Paulo em razão da divergência com os que impunham a circuncisão aos pagãos convertidos, é a maior confissão de fé que ele poderia fazer da Autoridade da Igreja, pois havendo divergência sobre a doutrina, não decidiu sozinho, mas levou a questão à Igreja.

Para São Paulo, o Espírito Santo é que constituiu os bispos para que apascentem a igreja de Deus, a qual Ele resgatou com seu próprio sangue (Atos 20,28), a Igreja é o corpo mesmo de Cristo, pois afirma que “Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo (...) Grande é este mistério; digo-o, porém, a respeito de Cristo e da igreja” (Efésios 5,23-32), e corpo é algo visível, palpável, concreto, organizado, e capaz de agir. Ele também ensina que a Igreja é a casa de Deus (ou seja, a família de Deus, como normalmente o termo casa é empregado na Bíblia), ela é “a coluna e firmeza da verdade” (1 Timóteo 3,15); e que a Igreja vem de um desígnio eterno, e dela procede a revelação de Deus a partir do Cristo (Efésios 3,9-11).

Em resumo Paulo não proclamaria Sola Scriptura, sorrateiramente, num texto que não tem qualquer correlação com esse tema, para negar, sem mais, seus próprios ensinamentos dados oralmente, e não poucos ensinamentos postos por escrito sobre a Tradição, a constituição, a natureza e a Autoridade da Igreja.

Assim, para não ir além do que está escrito em 1 Cor. 4, 6, não se deve fazer a extrapolação de que “o não acima do que escrito”, no meio de uma reprimenda do orgulho e partidarismo dos coríntios, esteja, na verdade, significando “Sola Scriptura!: somente deve ser crido o que se encontra escrito na Bíblia, rejeitem tudo que eu não tenha ensinado por escrito, a Tradição, transmitida por palavras e gestos, e a Autoridade da Igreja! Cada qual leia as Escrituras e faça sua própria interpretação, e julgue por si mesmo, pois nem o ensinamento nem a decisão de quem quer que seja, um bispo, um Concílio, Kefas, vale coisa alguma, somente a Escritura. Quanto aos que discordarem do seu entendimento da Escritura, como você é livre para interpretá-la, separe-se deles e crie sua própria igreja”. Essa é evidentemente a mensagem oposta à da 1ª Carta aos Coríntios.


Concluamos que sendo o Sola Scriptura algo que não se pode deduzir de “o não acima do que está escrito” no devido contexto, e sendo incompatível com a teologia paulina, não há qualquer possibilidade de que 1 Coríntios 4,6 o ensine.