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sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Aprendam a não ir além do que está escrito


Algumas pessoas têm pretendido que em 1 Coríntios 4, 6, estaria a enunciação do princípio formal do Protestantismo, Sola Scriptura, somente a Bíblia, na expressão “não ir além do que está escrito”. Façamos então uma leitura atenta dessa expressão sem ir além do que está realmente escrito.

Ocorre que o que no original, em grego, a expressão é, literalmente, “o não acima do que escrito”. É uma frase sem verbo, por isso nas traduções é acrescentado algum verbo que se supõe implícito no texto (Cf. nota NABRE). Assim a tradução envolve sempre uma conjectura sobre o significado dessa expressão, e para ser legítima deve se conformar ao contexto de todo o versículo em que São Paulo faz a admoestação de que os coríntios não devem se orgulhar por causa de um mestre em relação a outro (Fee).

A ausência de verbo faz pensar que se trate de um provérbio conhecido na época (Cevallos), sendo esta a principal interpretação desse texto (Kistemaker).

Outra conjectura, e são sempre conjecturas, é a proposta pelo teólogo protestante holandês Johannes Baljon, de que esse texto, na verdade, é um acréscimo posterior ao original, que acabou sendo copiado na sequência (glosa), algo que a crítica textual mostra ser factível.

Seja como for, uma coisa é certa, não está escrito “a Bíblia, toda a Bíblia, e nada mais que a Bíblia” (Spurgeon). Nem está escrito que tudo que deve ser crido ou obedecido encontra-se em algum ponto claramente na Bíblia (Confissão de fé de Westminster), nem que deva ser rejeitada a autoridade da Igreja, da Tradição, dos Concílios etc. (Declaração de Cambridge).

Mas se queremos saber o que está escrito de fato, está escrito que as tradições transmitidas oralmente devem ser guardadas com o mesmo zelo das transmitidas por escrito (2 Ts 2, 15), que o ensino recebido deve ser transmitido por sucessão (2 Tm 2, 2), que a igreja tem autoridade para apreciar questões de fé (Atos 15), é o corpo de Cristo que é sua cabeça (Ef 5, 23-32), estrutura-se com uma liderança visível (Mt 16, 18), e sua autoridade deve ser respeitada (Rm 13, 1-2), que a “casa de Deus, que é a igreja do Deus vivo, a coluna e firmeza da verdade” (1 Tm 3, 15).

Assim não indo além do que está escrito na Bíblia, não há alternativa senão reconhecer o erro do Sola Scriptura, e de todo o Protestantismo que nele se baseia.

Referências
Gordon D. Fee, The New International Commentary on the New Testament: The First Epistle to the Corinthians, Eerdmans, 1987, p. 166, original em inglês.
Juan Carlos Cevallos e outros (eds.), Comentario Bíblico Mundo Hispano, tomo 20, 1 y 2 Corintios, Editorial Hispano, 2003, p. 68.
Simon J. Kistemaker, Comentário do Novo Testamento, Editora Cultura Cristã, 2003, pp. 194-195.
Johannes Marinus Simon Baljon, De Tekst der Brieven van Paulus aan de Romeinen, de Corinthiërs en de Galatiërs als voorwerp van de conjecturaalkritiek beschouwd, Utrecht 1884, pp. 49–51.
Charles Haddon Spurgeon, The Eternal Name, em Spurgeon's Sermons Volume 01: 1855, Christian Classics Ethereal Library, p. 289.


Imagem: Códice Sinaítico (http://www.codexsinaiticus.org) com o trecho de 1 Cor 4, 6  "não acima do que está escrito" destacado.

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