“NÃO
ALÉM DO QUE ESTÁ ESCRITO”
(1
COR 4,6)
SOLA
SCRIPTURA?
A
expressão contida em 1 Cor 4,6, em sua tradução mais comum para a
língua portuguesa (“não ir além do que está escrito”), tem
servido a alegações da proclamação bíblica Sola
Scriptura,
princípio
fundamental do Protestantismo. Entretanto, o texto original seria
traduzido literalmente como “o não acima do que escrito”,
cuja ausência de verbos e outros complementos somente permite uma
tradução mediante a especulação do seu real significado, a qual,
para ser legítima, deve respeitar o respectivo contexto. A principal
teoria é que se trata de um ditado comum na época, e mesmo exegetas
protestantes que veem em “o que está escrito” uma referência à
totalidade do Antigo Testamento têm reconhecido que esta teria o fim
limitado pelo contexto, sendo uma lembrança da condição pecaminosa
e limitada do homem. Pertinente ainda é a tese de que essa
expressão, aparentemente sem sentido no contexto, seria uma glosa de
copista que passou a ser inserida no texto. Em todo caso, a negação
da tradição oral e da autoridade da Igreja, sendo a negação da
própria pregação do apóstolo, e sendo contrária ao ensinado por
São Paulo em outros textos, não pode abrigar-se aqui. E desse modo,
não indo além do que está escrito, descabe a extrapolação que vê
nesse trecho “Sola
Scriptura!”.
A
Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios repreende os habitantes
de Corinto por estarem se dividindo em partidos em razão do orgulho
por terem tido tal ou qual mestre (um diz eu sou de Paulo, outro eu
sou de Apolo, outro eu sou de Kefas, 1 Cor 1,12). Encontra-se, no
versículo 6 do capítulo 4 a expressão “aprendam de mim a não ir
além do que está escrito”, que tem sido muito usada na tentativa
de validar o Sola
Scriptura
(somente a Bíblia), princípio fundamental do Protestantismo.
O
versículo, na versão Almeida Corrigida Fiel, tem a seguinte
redação: “E
eu, irmãos, apliquei estas coisas, por semelhança, a mim e a Apolo,
por amor de vós; para que em nós aprendais
a não ir além do que está escrito,
não vos ensoberbecendo a favor de um contra outro” (sem destaque
no original).
Na
Nova Tradução na Linguagem de Hoje já encontramos: “aprendam
o que quer dizer o ditado: ‘Obedeça ao que está escrito’”.
Já na famosa King James Version, traduzindo literalmente, temos:
“que
aprendais em nós a não pensar dos homens acima do que está
escrito”.
A Tradução Ecumênica da Bíblia já tem a redação “...
a nosso exemplo, aprendais a não vos inchar de orgulho, tomando o
partido de um contra o outro”.
A versão portuguesa “O Livro” já traz: “...
tenho vindo a dizer: o que vocês pensam deve ser submetido ao que
dizem as Escrituras”.
A chamada Versão Fácil de Ler já escreve: “...
aprendam isto: ‘Sigam somente o que as Escrituras dizem’”.
Na Nova Bíblia Viva encontramos: “...
lhes digo: que vocês não devem ter preferências pessoais”.
E traduzindo literalmente a famosa Amplified Bible temos: “vocês
aprendam [a pensar dos homens de acordo com a Escritura e] não ir
além do que está escrito”.
Pode-se
dizer que a parte antecedente (“E eu, irmãos, apliquei estas
coisas, por semelhança, a mim e a Apolo, por amor de vós; para que
em nós aprendais...”) e a consequente (“... não vos
ensoberbecendo a favor de um contra outro”), guardadas as
respectivas adaptações de concordância, mantêm-se constantes.
Entretanto,
especificamente o trecho que diz “não ir além do que está
escrito” aparece com grandes variações: desde o mais comum “não
ir além” ou “não ultrapassar” o que está escrito, passando
por “não pensar do homem acima” do que está escrito, pela
afirmação de que se trata de um ditado que diz “obedeça ao que
está escrito”, chegando a “o que vocês pensam deve ser
submetido às Escrituras”, “sigam somente as Escrituras”,
“vocês não devem ter preferências pessoais” ou “não devem
se inchar de orgulho”.
Porque
esse trecho tem tantas traduções tão variadas, umas dizendo não
vá além do que está escrito, outras não pensar dos homens mais do
que o que está escrito, outras simplesmente absorvendo essa pequena
expressão na mensagem geral do versículo dizendo não se encham de
orgulho, enquanto outras ainda dizendo andem conforme as Escrituras?
A
resposta é que o texto grego antigo em que essas traduções são
baseadas não possui verbo. Na verdade é um texto cuja tradução e
compreensão tem desafiado estudiosos há séculos.
O
texto grego, transliterado, é “tó mé hiper rá gegráptai”,
que literalmente é “o não acima do que escrito”, ou “o não acima
do que está escrito”, ou ainda “o não além do que está
escrito”.
Ocorre
que ao ser traduzido, para que esse texto tenha sentido, é preciso
especular. Há um verbo implícito? Mas qual? Ir, pensar, considerar?
Mas o que? Sobre o que? “O escrito” são as Escrituras? Mas por
que não é citado nenhum trecho como nos outros locais da mesma
carta onde aparece a expressão “está escrito”? Essa frase tão
estranha seria um ditado conhecido na época? Mas o que significava?
Diferentes
suposições (e são sempre e apenas suposições), levam a traduções
e interpretações completamente diferentes.
Como,
então, entender esse trecho? Parece que a razão está com Gordon D.
Fee: “Seja o que for que signifique, o objetivo de tudo que
precede, como o resto do argumento demonstra, é a proposição da
cláusula final: que ‘vocês não se orgulhem de um contra o
outro’” (The New International Commentary on the New Testament:
The First Epistle t0 the Corinthians, Eerdmans, 1987, p. 166,
original em inglês).
Portanto,
seja um apelo aos princípios do Antigo Testamento, como a condição
pecaminosa do homem, seja um ditado que tenha um significado como o
conhecido “não procure pelo em ovo”, ou “chifre em cabeça de
cavalo”, “não complique as coisas”, seja uma remissão ao que
Paulo já escrevera nesta ou noutra carta, etc., seja o que for, esse
trecho de apenas cinco palavras (“tó mé hiper rá gegráptai”)
deve ser interpretado no contexto, e não numa extrapolação de
sentido que contraria os objetivos do versículo e da Carta como um
todo, para atender aos objetivos do intérprete.
Com
essa visão parecem concordar a maioria, senão todos os exegetas
protestantes de renome, como vemos a seguir.
No
Comentário Bíblico NVI, editado por F. F. Bruce (Editora Vida,
2008), temos: “... Não
ultrapassem o que está escrito.
Para eles, é a necessidade de aprender o lugar subordinado do homem
e da posição exaltada de Deus; a sabedoria humana sendo substituída
pela de Deus, os líderes humanos, substituídos por Cristo. Essa é
a cura para as facções – o orgulho inchado que iria ‘favorecer
um e desprezar o outro’ (NEB) – e para o orgulho presunçoso
deles, que confundia os dons de Deus com as suas próprias
realizações” (Paul W. Marsh, 1 Coríntios, p. 1881).
Já
Leon Morris escreve na reconhecida Série Cultura Bíblica (Editora
Vida Nova): “Podemos muito bem conjeturar que não ultrapasseis o
que está escrito(‘não além do que está escrito’) era um lema
familiar a Paulo e a seus leitores, dirigindo a atenção para a
necessidade de conformidade com a Escritura. Portanto, ele está
dizendo que, considerando o que ele teve que dizer acerca de Apolo e
de si próprio, eles aprenderão a ideia escriturística da
subordinação do homem. Uniformemente a Bíblia exalta a Deus. A
ênfase dada pelos coríntios às pessoas dos mestres significava que
eles estavam tendo os homens em demasiado alta consideração” (I
Coríntios: introdução e comentário, 1986, p. 62).
Hernandes
Dias Lopes, no Comentário Hagnos: “Os coríntios julgaram Paulo,
Apolo e Pedro por suas preferências e preconceitos. Entretanto,
Paulo diz que não devemos julgar uns aos outros por esses critérios.
(...) O que significa ultrapassar o que está escrito? Se você tem
de examinar alguém, limite-se ao ensino das Escrituras. A única
base de avaliação é a Palavra de Deus e não nossas opiniões. Não
superestime os ministros além da medida das Escrituras” (I
Coríntios: como resolver conflitos na igreja, 2008, pp. 76-77).
Simon
J. Kistemaker, no Comentário do Novo Testamento (Editora Cultura
Cristã), afirma que “A maioria dos estudiosos acredita que essas
palavras ‘são evidentemente um provérbio, ou um princípio, em
fórmula proverbial’. Pode ter sido um ditado corrente na arena
política da época de Paulo e que servia para a promoção da
unidade. Paulo, dizem esses especialistas, faz uso de uma máxima
familiar nos círculos de Corinto para apelar para o fim das divisões
na igreja e para promover a unidade” (2003, pp. 194-195).
Thomas
Reginald Hoover, no Comentário Bíblico: 1 e 2 Coríntios (CPAD):
“Não devemos ir além ‘daquilo que está escrito’,
gloriando-nos em determinados pregadores ou mestres. Devemos
‘gloriar- nos no Senhor’ (Jr 9.23,24). Uma razão disso é que
não sabem os motivos das outras pessoas. Escondemos os nossos
motivos dos nossos semelhantes e, às vezes, nem percebemos a nossa
própria motivação. Mas Deus tudo vê, e julgará até os motivos
das nossas ações” (1999, p. 38).
Mesmo
João Calvino, que sistematizou a doutrina protestante, entendeu
apenas que “A frase ‘acima do que está escrito’, pode ser
explicada de duas maneiras, ou seja: como uma referência ao que
Paulo escreveu, ou às provas bíblicas a que fez referência. Visto,
porém, que isso não é muito importante, os leitores estão livres
para escolherem o que preferirem” (I Coríntios, Edições
Parakletos, 2003, p. 135).
Poderíamos
multiplicar as citações... Certo é que, no contexto, a expressão
“o não acima do que está escrito”, não pode ser vista senão
como algo que tenha um sentido compatível com “estou lhes
ensinando a não se orgulharem em favor de um e contra outros,
criando facções como se Cristo estivesse dividido”.
Donde
razão assiste a traduções como da TEB e da Nova Bíblia Viva, que,
ao invés de transferirem ao leitor comum da Bíblia o problema de
entender o que essa enigmática expressão do texto original
significa, apresenta o significado integral do versículo.
Lado
outro, repreensível a tradução tendenciosa, como da Versão Fácil
de Ler (VFL) elaborada pela Bible
League International,
que força o texto no sentido que mais favorece sua posição
doutrinária, assumindo pressuposições que nem os exegetas
protestantes (pelo menos a grande maioria) reconhece como legítimas.
Não
podemos concluir esse estudo, enfim, sem mencionar algo de suma
relevância sobre essa expressão (“o não acima do que está
escrito). Desde o trabalho do teólogo protestante holandês Johannes
Marinus Simon Baljon (De Tekst der Brieven van Paulus aan de
Romeinen, de Corinthiërs en de Galatiërs als voorwerp van de
conjecturaalkritiek beschouwd, Utrecht 1884, pp. 49–51) é
grandemente apoiada a tese de que esse trecho é uma glosa, isto é,
um acréscimo feito por um copista, que passou para as futuras
cópias.
Assim,
“o não acima do que [está] escrito” seria uma anotação de que
o termo “não” (de “não vos ensoberbecendo”) estava inserido
acima do texto corrente no original, algo que ocorre em textos
escritos à mão. Nas cópias posteriores o que era apenas uma
anotação marginal (glosa) foi sendo copiado no texto e lido como
sua parte integrante. Para a chamada crítica textual, ciência que
tem buscado chegar o mais próximo possível do texto primitivo da
Bíblia mediante o estudo comparativo de manuscritos e a
identificação de possíveis inserções e erros ocorridos ao longo
de quase 1500 anos de cópias à mão, isso não é algo de se
estranhar. É bom lembrar aqui que a Bíblia não caiu do céu
impressa, encadernada, com zíper, índice, com todos os livros
juntos e divididos em capítulos e versículos.
A
nota de estudos na TEB, com efeito, registra: “O texto traz: o não
acima do que está escrito. É difícil dar um sentido aceitável a
esse texto. Uma hipótese engenhosa, adotada aqui, supõe tratar-se
da nota marginal de um copista relativa a uma particularidade gráfica
(o ‘não’ está escrito acima do ‘a’) e que um copista pouco
inteligente transladou para o texto. Outros pensam num provérbio...”
A Bíblia de Jerusalém anota semelhante observação.
E
no prestiagiado Comentário Bíblico São Jerônimo encontramos:
“‘não ir além do que está escrito’: J. Strugnell demonstrou
(CBQ36 [1974] 555-58) que to mé hyper ha gegraptai é o comentário
marginal de um copista em cujo exemplar faltava um mé, ‘não’,
que ele introduziu antes de heis” (Jerome Murphy-O ’Cornnor, O.
P., Primeira Carta aos Coríntios, p. 462, em Novo Comentário
Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos,
Academia Cristã, Paulus, 2011).
Erro
de copista ou não, contudo, “não ir além do que está escrito”,
não é uma proclamação do Sola
Scriptura,
e, de fato, não vem sendo apresentado como tal por estudiosos e
tradutores da Bíblia dignos de nota. Essa é uma expressão que
apenas quando traduzida com o acréscimo de certas palavras, e posta
fora do contexto em que se encontra na Bíblia, parece proclamar o
Sola
Scriptura.
A expressão pode ser uma referência a um ditado ou lema da época,
ou, caso se refira à Bíblia, à condição pecaminosa do ser
humano, mas em ambos os casos, como reforço à reprimenda ao orgulho
dos coríntios, que é o real objeto do texto bíblico.
Ademais,
tenha-se em conta que se São Paulo estivesse proclamando o Sola
Scriptura,
estaria ele negando seu próprio ensinamento oral, que ele manda
guardar e transmitir de modo igualmente oral, assim como seu
ensinamento sobre a autoridade, especialmente da Igreja.
Com
efeito, Paulo não diria para rejeitar a Tradição, quando ensinou
em 2 Tm 2,2 “E o que de mim, entre muitas testemunhas, ouviste,
confia-o a homens fiéis, que sejam idôneos para também ensinarem
os outros”, em 2 Tm 3,14 “Tu, porém, permanece naquilo que
aprendeste, e de que foste inteirado, sabendo de quem o tens
aprendido”, e em 2 Ts 2,15 “Então, irmãos, estai firmes e
retende as tradições que vos foram ensinadas, seja por palavra,
seja por epístola nossa”, entre outros trechos que enfatizam o
valor dos ensinamentos do Apóstolo dados oralmente, assim como da
transmissão oral desse ensinamento.
São
Paulo, também não poderia estar negando a Autoridade da Igreja,
quando proclama a origem divina da autoridade: “Toda a alma esteja
sujeita às potestades superiores; porque não há potestade que não
venha de Deus; e as potestades que há foram ordenadas por Deus. Por
isso quem resiste à potestade resiste à ordenação de Deus; e os
que resistem trarão sobre si mesmos a condenação” (Romanos
13,1-2); e a legitimidade desta para julgar: “Ousa algum de vós,
tendo algum negócio contra outro, ir a juízo perante os injustos, e
não perante os santos? (…) Não há, pois, entre vós sábios, nem
mesmo um, que possa julgar entre seus irmãos?” (1 Coríntios
6,1-5). E se um gesto vale mais que mil palavras, então Atos 15, que
narra o Concílio de Jerusalém provocado por Paulo em razão da
divergência com os que impunham a circuncisão aos pagãos
convertidos, é a maior confissão de fé que ele poderia fazer da
Autoridade da Igreja, pois havendo divergência sobre a doutrina, não
decidiu sozinho, mas levou a questão à Igreja.
Para
São Paulo, o Espírito Santo é que constituiu os bispos para que
apascentem a igreja de Deus, a qual Ele resgatou com seu próprio
sangue (Atos 20,28), a Igreja é o corpo mesmo de Cristo, pois afirma
que “Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador
do corpo (...) Grande é este mistério; digo-o, porém, a respeito
de Cristo e da igreja” (Efésios 5,23-32), e corpo é algo
visível, palpável, concreto, organizado, e capaz de agir. Ele
também ensina que a Igreja é a casa de Deus (ou seja, a família de
Deus, como normalmente o termo casa é empregado na Bíblia), ela é
“a coluna e firmeza da verdade” (1 Timóteo 3,15); e que a Igreja
vem de um desígnio eterno, e dela procede a revelação de Deus a
partir do Cristo (Efésios 3,9-11).
Em
resumo Paulo não proclamaria Sola
Scriptura,
sorrateiramente, num texto que não tem qualquer correlação com
esse tema, para negar, sem mais, seus próprios ensinamentos dados
oralmente, e não poucos ensinamentos postos por escrito sobre a
Tradição, a constituição, a natureza e a Autoridade da Igreja.
Assim,
para não ir além do que está escrito em 1 Cor. 4, 6, não se deve
fazer a extrapolação de que “o não acima do que escrito”, no meio
de uma reprimenda do orgulho e partidarismo dos coríntios, esteja,
na verdade, significando “Sola
Scriptura!:
somente deve ser crido o que se encontra escrito na Bíblia, rejeitem
tudo que eu não tenha ensinado por escrito, a Tradição,
transmitida por palavras e gestos, e a Autoridade da Igreja! Cada
qual leia as Escrituras e faça sua própria interpretação, e
julgue por si mesmo, pois nem o ensinamento nem a decisão de quem
quer que seja, um bispo, um Concílio, Kefas, vale coisa alguma,
somente a Escritura. Quanto aos que discordarem do seu entendimento
da Escritura, como você é livre para interpretá-la, separe-se
deles e crie sua própria igreja”. Essa é evidentemente a mensagem
oposta à da 1ª Carta aos Coríntios.
Concluamos que sendo o Sola
Scriptura
algo que não se pode deduzir de “o não acima do que está
escrito” no devido contexto, e sendo incompatível com a teologia
paulina, não há qualquer possibilidade de que 1 Coríntios 4,6 o
ensine.
Muito bom!!
ResponderExcluirSensacional! Ajudou-me muito num debate!
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